SOROCABA
(1)
Ezequiel Freire
"Vaguei por Caçapava,
"Por Guaratinguetá.
"Por Pindamonhangaba,
"Por Jacarepaguá" |
ORIGENS
I
Em 1654 o dr. Ferreira Braga, perdão, o paulista Baltasar Fernandes,
em companhia de seus dois genros André e Bartolomeu de Zunega,
emigrou de Parnaíba, indo estabelecer-se com sua família e a dêles
na distância de três léguas do morro de Biraçoiaba, atual Fábrica de
Ferro do Ipanema, fundando aí uma capela dedicada à "Senhora da
Ponte".
Foi a capela elevada a vila em data de três de março de 1661, sendo
governador geral — Salvador Correia de Sá e Benevides.
Foi a vila elevada a cidade por lei provincial de 5 de fevereiro de
1842.
Azevedo Marques, donde havemos as notas supra, dá para Sorocaba o
significado etimológico, investigado por Martius, de — "lugar em que
a queda das águas produz covas".
(1) Em vista de constituir precioso depoimento da época — já lá
se vão quase trinta e cinco anos — reproduz a nossa revista as
impressões do ilustre intelectual Ezequiel Freire em viagem a
Sorocaba, cidade sobre a qual nos legou êle um valioso repositório
de informações, nele incluindo dados sobre as famosas minas e
fábrica de ferro do Ipanema e sobre o monumento ali erigido ao
grande historiador Varnhagen. A nossa reprodução é feita das
reportagens do inspirado vate resendense publicadas em março e abril
de 1919, no jornal "Cruzeiro do Sul", editado em Sorocaba.
Não sei donde
razão houveram para tal nome darem à capela da "Senhora da Ponte" os
sucessores de Baltasar Fernandes.
Não vi covas, nem buracos de espécie alguma, quer na cidade, que é
uma das mais asseadamente mantidas do interior, quer nas cochilhas
circundantes, onde até as "bossorocas" faltam, mui freqüentes,
entretanto, nos campos nativos de solo areento, como os sorocabanos.
Sob outros aspectos:
Três fases podem ser assinaladas na história de Sorocaba: — a fase "burrífica",
a algodoeira e a política, ou politiqueira, à vontade.
A primeira decorre sob o reinado anônimo dos antigos muladeiros, que
labutavam no comércio das tropas, concentrando anualmente em
Sorocaba, por ocasião das feiras, entre sessenta e cem mil bestas.
Cabe, pois, à velha cidade de Baltasar Fernandes a glória
indisputada de haver fornecido de burros o resto desta e as
províncias limítrofes.
Desses periódicos êxodos de muares sorocabanos por toda a parte há
vestígios. Nota-se mesmo que por demais prolificaram os emigrados já
reproduzindo-se em unidades íntegras ("Fulano é um burro", diz-se
por aí, nas palestras, nas polêmicas jornalísticas, nas discussões
parlamentares) ; — já temperando os humanos em quantidades
fracionarias; — "forte pedaço d'asno'' chama-se por todos os cantos,
acerca dos mais conspícuos sujeitos.
A segunda fase decorre entre os anos de 186 e tantos e 1886, sob o
reinado absoluto do sr. Mateus Mailaski, prestante e prestimoso
cidadão polaco, assinalando-se esta época pela prosperidade —
cultura e manufatura da indústria algodoeira, por aquele cidadão
fomentada.
O fato culminante do domínio Mailaski foi a construção do Tonel das
Danaides, denominado por um pudico eufemismo administrativo —
"Estrada de Ferro Sorocabana".
Dezoito anos hão sido consumidos numa contínua e tenaz quão
infrutífera tentativa de encher-se o dito tonel; operação para a
qual concorreram os acionistas e concorre ainda a Província, com a
contumácia e a improficuidade de um córrego a engolfar-se em;
sorvedouro insondável.
O próprio inventor daquele Maelstron de sorver dinheiro, um dia,
inadvertidamente, foi a sondar-lhe as profundezas; mas o remoinho
colheu-o no seu vórtice, sugou-o, como se se tratasse de um saco de
dinheiro; e cuspiu-o para. fora, como a uma burra vazia, sem
prestígio e sem poder. — Ainda desta vez cumpriu a "Sorocabana" a
sua sina originária — de sorvedoiro.
A terceira e última fase — "le roi est mort, vive le roi!" — vem do
destronamento d'El-Rei Mailaski, e decorre ainda sob a realeza
política do dr. Ferreira Braga, com sintomas intermitentes de
bruxoleamento.
Que El-Rei vigente se aprecate e não cochile à sombra dos louros
colhidos; — há quem aguarde desperto: as ambições por via de regra
não dormem.
II
Teve Sorocaba uma vida brilhante, enquanto foi empório comercial de
muares.
Nos meses de feira a animação era enorme. — Os muladeiros traziam
tropas do Paraná e Rio Grande, e voltavam, levando em troca dinheiro
amoedado. Durante a permanência deles, giravam abundantes, das suas
guaiacas de couro para as dispersoras mãos das hetairas — as onças e
os patacões. — Gente de costumes livres, entediados pelas
abstinências dos prazeres durante as longas noites do pouso, agora,
aqui chegados, vendida a mulada, embolsado o dinheiro — toca a
folgar!
Daí um grande comércio de amor venal. Bandos de "chinas" forasteiras
acudiam ao tinir do oiro, ávidas, sabedoras do apetite e da
generosidade do muladeiro dinheiroso. Contam velhos desses tempos
que "era um Deus nos acuda" aquilo!
Pelas ruas dos subúrbios, em pleno dia, no bairro da Ponte
principalmente, floriam moças alegres, enroupadas de sedas vistosas,
saias de chamalotes furta-côres com grandes ramagens de tons
variegados formando largos e pesados barrados, frente curta
descobrindo os tornozelos nus e os pés de mimosas vadias metidos em
chinelinhas baianas de marroquim vermelho ou de belbutine bordada a
lantejoulas.
Entrecruzavam-se pelas lojas dos ourives à compra das belas
arrecadas de filigrana de prata, e iam alegres, falando alto, com
uma grande flor metida nos cabelos arrepiados ainda pelas carícias
amorosas da véspera; enquanto pelas ruas areentas e faiscantes, sob
o sol esbrazeador, os muladeiros garbosos faziam tinir a ferragem
dos seus lagoais de buxo, árdegos e nédios, ajaesados de prata em
todos os aviamentos dos arreios.
A riqueza do "apero" era o apanágio do rico muladeiro; por isso um
grande garbo para êle era ter o seu pampa de estimação coberto de
prata. De prata eram os estribos de alta picaria, finamente
trabalhados, bem como os longos passadores tubulares dos loros;
peitoral, maneador, buçaletes, rédeas e cabeçada, tudo de trancelim
de prata delicadamente entretecido, cintilava ao sol, ao elegante
curvetear dos cavalos de luxo estimulados pelo tilintar das chilenas
do cavaleiro.
E toca a tirar desforra das longas noites solitárias no rancho do
pouso, dormidas ao relento às vezes, durante a longa travessia da
viagem!
No intervalo, entre feira e feira, amortecia o mercado, e debandavam
as Lais educadas naquela escola transitória do amor viajado. Algumas
tornaram-se legendárias noutras partes e mantiveram famoso o nome
sorocabano.
Além do burro e da hetaira, Sorocaba exportava artefatos de metal,
arreios, tecidos de couro, lã e linha. Todas estas indústrias, fora
a última que ainda se mantém próspera pelo fabrico doméstico das
redes de balanço, definharam, e vão sendo suplantadas pelas suas
congêneres do Rio Grande e Paraná.
III
Três agradáveis dias passei em Sorocaba, amenizados pela cordial
hospitalidade do meu amigo Francisco Teixeira de Sousa Leite,
cavalheiro cuja amabilidade é ainda maior que o nome. Em sua
companhia percorri a cidade, que tem, como todas do interior, o
aspecto calmo e morto resultante da falta de bulício comercial; mas
que possui, compensadoramente, excelentes paisagens e deliciosos
pontos de vista.
Assim, do cemitério, sito numa eminência, e cortado por um duplo
renque de velhas casuarinas alternadas com guapirubus frondosos,
desfruta-se belo panorama da cidade.
Outro sítio belíssimo, donde a vista se espraia por extensas
campinas e matagais, é a "Chácara da Saúde", um dos mais
confortáveis sanatórios que possam encontrar os débeis, os
convalescentes, todos quantos necessitem de ares restauradores.
A "Chácara da Saúde", fundada pelo dr. Nicolau Vergueiro,
exclusivamente destinada à convalescença e restauração dos doentes,
não recebe pessoas afetadas de moléstias contagiosas. Está situada
num planalto, dominando extensas terras, sendo que os arredores do
prédio são de terrenos areentos, muito enxutos, plantados de
vinhedos e cereais. O edifício é vasto, alto, ventilado, inundado de
luz, mantido com muita ordem e meticuloso asseio. Entretanto a
modéstia do proprietário, que não anuncia o seu estabelecimento em
retumbantes reclames, faz com que não seja a "Chácara da Saúde" tão
freqüentada quanto era de esperar, atenta a excelência dos ares da
localidade, e a confortável hospedagem que oferece.
Na cidade visitei o que de curioso havia. É digno de menção o
"Gabinete de Leitura", perfeitamente instalado, com provida
livraria, excelente salão de leitura e sala de palestra. Fundado
pelos auspícios do sr. Mateus Mailaski, inaugurou-se em janeiro de
1869. Atualmente funciona em prédio próprio,, tendo por presidente e
principal benfeitor o dr. Olivério Pilar.
A indústria algodoeira teve sua época de florescimento em Sorocaba
entre os anos de 1870 e 1874, quando, em conseqüência da guerra dos
Estados Unidos, o algodão alcançou o enorme preço de 30$000 a
arroba; preço que hoje oscila entre 6 e 7$000.
Apesar da decadência do valor do gênero, o município não abandonou
de todo aquela cultura; e é da produção da lavoura regional que se
alimenta a importante fábrica de tecidos do sr. Manuel José da
Fonseca.
Fundado em 1881 tem tido próspera existência este estabelecimento
onde funcionam atualmente 65 teares, dando serviço a 250 operários,
quase todos nacionais.
Indústria outrora florescentíssima em Sorocaba, hoje deperecendo em
triste abandono, é a sua famosa ourivesaria artística de prata e
ferro, quase de todo atualmente suplantada pela concorrência de
produtos de fancaria importados do Rio Grande.
A indústria dos arreios, embora decadente quanto à delicadeza
artística dos artefatos, mantém-se entretanto próspera como gênero
comercial. As transações sobre obras de couro sobem a 500 contos
anualmente, sendo feito na terra grande parte do fornecimento.
Característica e simpática indústria doméstica sorocabana é a de
tecelagem de redes de algodão. Neste gênero, a velha cidade de
Ferreira Braga, digo, de Baltasar Fernandes, não tem competidora.
Vi-as belíssimas, entretecidas de fios multicores formando desenhos
elegantes, algumas de solferino e preto mesclados, outras adornadas
com plumas de pássaros, muito ricas. Pena é que a habilidade das
tecedeiras sorocabanas não seja aproveitada para a manipulação da
seda nesse e em outros artefatos de ornamentação luxuosa, como
cortinas, reposteiros etc.
O cuidado pela instrução documenta-se em sete escolas públicas de
ambos os sexos. Funcionam igualmente seis colégios particulares,
sendo merecedor de especial menção o "Liceu Municipal", fundado e
mantido pela câmara, onde são lecionadas, além dos elementos de
contabilidade, as línguas portuguesa, francesa, inglesa e latina. O
distinto professor do Liceu, sr. Artur Gomes, obteve o lugar por
concurso.
Umas das excursões obrigadas para o turista visitante da cidade, é
ao "Salto do Votorantim", formado pelo rio Sorocaba. Facilmente
accessível por caminho de tróli, o Votorantim oferece à contemplação
do espectador impressionável uma das mais belas cenas da Natureza
agreste.
Plena mata. — Angustiado entre altas penedias, precipita-se o rio
por boqueirão de ásperas rochas, formando três saltos de aspecto ao
mesmo tempo gracioso e augusto; porquanto, ora nos amedronta o
precipício em que as águas estrondeando se engolfam; ora nos
enfeitiçam a vista os policromos efeitos da luz solar ferindo de
soslaio a atmosfera nevoenta, e iluminando a paisagem com os
cambiantes matizes do arco-íris.
A cachoeira cataratando absorve no seu fragor perpétuo todos os
outros rumores da estância ;
ante o cheiroso corimbo de uma trepadeira silvestre paira adejando
um beija-flor de penas rútilas;
pousando na hástea flexível de uma taquara, sobranceiro ao abismo, o
martim-pescador perscruta e aguarda ;
enquanto à frol d'água cintila o fugidio e prateado reflexo dos
alambaris brincando no remanso em que se aquieta o rio antes de dar
o pulo ao abismo...
DE SÃO PAULO A IPANEMA
A queda no sol
I
Acordar um pouco mais cedo; saudar o sol na fímbria do oriente;
respirar uma larga onda de ar fresco, surpreender as flores no
"negligè" da manhã, ainda borrifadas do orvalho da noite, como uma
face rosada que sai do banho, aspirar-lhes o aroma condensado na
corola mal aberta; alegrarmos a alma com a pura luz do alvorecer,
ouvir os primeiros argentinos gorgeios d'ave; sentir mais intensa a
vida, mais juvenil o coração, 'mais risonha a fantasia, toda em
alvoroço a alma; — eis o que bem compensa e sobejamente paga o sono
interrompido da manhã e o trabalho de aprestar a viagem.
Madrugada! doce hora amiga, quão raras vezes te vivem os sonolentos
burgueses, encasulados até alta-manhã nas estreitas alcovas,
abafadiças e doentias.
E, lá fora, já andou longo caminho o sol, já não há .nem orvalho na
folhagem, nem frescura dos ares; já emudecem na sombra os pássaros,
quando o dorminhoco estremunha, mal desperto, no primeiro
espreguiçamento, abrindo largamente a boca em grande bocejo mole e
fastiento.
E o trem lá segue, pelas terras em fora, ruidoso, deslisando no
plaino da linha, aos bufos precipites da locomotiva.
No interior do vagão, com as vidraças erguidas por que não entrem
lufadas do trio ar matutino, cabeceia o passageiro sobre as notícias
do jornal do dia, ou, acomodado a um canto, reata o fio do sonho
interrompido...
... sonho ou realidade!...
... a Terra fôra-se a pouco e pouco evaporando: A princípio, o veio
dos córregos, os ribeiros, os lagos de inverno que a chuva forma nas
baixas campinas; depois, os grandes rios; por fim, os vastos
estuários dos oceanos.
Onde fora o mar era agora o extenso e escuro abismo, vestido de uma
vegetação gigantesca e estranha entre cujo enredo se debatiam os
colossais monstros marinhos ainda sobreviventes à secura da águas.
De espaço a espaço, no cimo dos bancos de areias ou dos abrolhos de
pedras, outrora à flor das ondas, apareciam as quilhas dos navios
afundidos na perigosa travessia dos mares; ali eram os fabulosos
tesouros submersos com os galeões das frotas que transportavam para
a cúpida Europa o ouro e as pedras preciosas arrancadas do seio das
virgens terras americanas; ali estavam os capítulos da história
trágica de todos os naufrágios notados nas carcaças apodrecidas das
naus e das galeras que boiavam no plaino líquido, quando os oceanos
se estendiam de continente a continente, ocupando duas terças partes
da Terra.
A enorme massa d'águas evaporada envolvia o. globo de uma espessa
atmosfera opaca e densa; jazia a esfera em lututulenta penumbra,
impenetrável aos raios do sol.
Apenas das bandas do Levante, circundada por uma auréola afogueada,
brilhava uma grande estrela imensamente luminosa, projetando
obliquamente no espaço enevoado um peixe recurvo de raios, de uma
luz branca e crua como um alfange de aço reluzente.
Aquele enorme globo de fogo parecia aproximar-se da Terra com uma
rapidez surpreendentemente veloce. À proporção que o seu disco se
avoluma, a temperatura da atmosfera terrestre subia a um grau
extremo. Estalavam os termômetros pela dilatação extraordinária do
mercúrio. Grandes bandos de aves cortavam vertiginosamente os ares
soltando pios medonhos, depois caíam, uma a uma, asfixiadas pelo
calor. Foram-se as folhas das árvores encurvando, contorcendo-se,
murchando: de repente a ramaria das matas pegava fogo e a
conflagração estendia-se de serra a serra. Negrejava a fumaça nos
ares, as labaredas dos grandes incêndios lambiam a face desolada dos
céus. A terra em breve era uma imensa fornalha; a vida ia-se pouco a
pouco aniquilando.
II
0 homem só, por um inexplicável fenômeno, resistia ao aniquilamento
geral dos seres; guardava-o Deus, talvez, para testemunhar o fim do
mundo; dava-lhe tempo para o arrependimento e para a oração; e o
Homem, em vez de orar, blasfemava.
Atônito, assombrado, quase insensível pela grandeza do pavor, o
Homem, cerrando os punhos, ameaçava os céus e apostrofava a
catástrofe.
Todo o reino orgânico morrera. A própria Terra dissolvía-se em
poeira e torvelinhava nos abismos.
Fundiam-se os minerais escorrendo pesadamente, em rios de fogo
líquido, no dorso nu das serras, e iam, precipitando-se pelas
escaras abertas na crosta terrestre, chocar-se, em medonhos
conflitos, com as forças plutônicas que irrompiam do interior do
globo. Depois, transbordando, renovam um oceano de fogo no leito
seco dos oceanos evaporados.
O que se passava na Terra parecia não ser mais do que um episódio na
catástrofe geral dos mundos.
Havia, por certo, a mesma luta por todo o infinito sideral.
De espaço a espaço, enormes estrondos pareciam anunciar que mais um
planeta arrebentara numa suprema explosão!
Outras vezes, um grande deslumbramento! ' Era uma esfera, que,
desprendida do seu sistema planetário, precipitava-se pelos
infinitos espaços, atraída para o turbilhão central da Universo.
Dava-se um
profundo desequilíbrio na harmonia geral do Cosmos, e a Terra
revoluteava, como um grão de poeira, no torvelinho caótico dos
mundos dissolvidos!
Eu admirava surpreso o magnífico espetáculo, surpreso, porém
orgulhoso de acabar tragicamente.
A contemplação do caos dava-me uma calma relativa ao espírito. Que
magnífico assunto! exclamava. E inscrevia algumas notas na minha
carteira de viagem.
A grande estrela caudata, que a princípio surgira no oriente,
levava-nos, agora, na sua vertiginosa corrida em direção ao sol.
Não só nós; iam também, arrastando na enorme cauda luminosa, outros
mundos que ela atraíra nas suas correrias pelos espaços
interplanetários.
Íamos todos, a Terra, a Lua, o Touro, as duas Ursas, o singular
Scorpião, as Cadelas das Circes, quase toda a bicharia sideral,
esbarrando-nos uns nos outros, abalroando-nos, atraídos, repelidos,
num torvelinho doido, estontecedor...
Súbito, um medonho estrondo! adeus mundo! A Terra acabava de
precipitar-se no âmago incandescente do sol!
0 cataclismo, entretanto, não se deu sem algum abalo. Dos meus
companheiros de viagem não sei se muitos se contundiram. Quanto a
mim, senti uma forte pancada no crâneo; abri os olhos; — estávamos
na estação do Barueri, da ferrovia Sorocabana.
0 abalo que me despertara fora ocasionado por um contra-choque do
trem ao estacar repentinamente em frente à plataforma.
Olhei para os circunstantes, para os curiosos da estação, para a
paisagem em frente; palpei-me; toquei a almofada do recosto em que
vinha reclinado.
Custava-me crer no que via, a readquirir a realidade das coisas.. .
— Pois então, não se acabou o mundo? perguntei ao vizinho da frente.
— Não, senhor, respondeu-me convictamente o coronel Amaro.
— Pois o Cometa, insisti, não arrastou a Terra para o Sol?
— Qual, doutor, o sr. estava dormindo e parece que foi pisado pela
"pisadeira".
— Pela "pisadeira"? que vem a ser esse bicho, coronel?
— Eu lhe conto, replicou o meu interlocutor, e referiu-me uma
curiosa lenda de senzala, que o leitor lerá no seguinte artigo.
Abusões
roceiras
I
O coronel Juvêncio Amaro da Fonseca, ou simplesmente, o coronel
Amaro, era uma figura "essencialmente agrícola".
Largo carão vermelho como miolo de melancia madura; cabelo alourado,
rebelde e grosso como as bonecas do milho antes de maturescência,
nariz amplo, grosseiro, térreo, informe como uma raiz de mandioca;
dentes enormes, destacados, semelhando moirões de cercas da roça;
pescoço de touro, olhos perdizes, de cavalo esperto ,e velhaco.
Calçava botas de couro de veado e vestia paletó e calças de algodão
paulista azul.
A camisa, francamente desabotoada, deixava à mostra o largo peito
hirsuto, forrado de cerdas ásperas e longas.
Ostentava uma saúde exuberante de terras estrumadas, e porejava-lhe
de toda a figura a seiva de um sangue rico alimentado a entrecostos
e a inhames.
Trazia na roupa todas as nuanças das cores agrícolas; o carvão das
queimadas, a lama dos brejos atravessados; parecia que se revolvera
nas varreduras do terreiro, nos bagaços da cana, no chão dos
currais.
Tresandava a cheiros indefiníveis e era loquacíssimo, inteligente e
bom, dessa bondade que deflui da máxima — "a caridade bem entendida
começa por casa".
Por isso trazia sempre consigo farta provisão de idéias lúcidas e de
matulotagem; aquelas na ponta da língua, prontas para a primeira
palestra adventícia; esta num pequeno saco de viagem, reservada para
as solicitações do estômago insaciável.
O coronel Amaro contou-me que a "pisadeira" é uma espécie de sapo
que vive oculto nos buracos das senzalas, donde sai, alta noite, a
perturbar o sono dos pretos que dormem ressupinos nas tarimbas. Em
vendo-os bem adormecidos vem a "pisadeira" e senta-se-lhes sobre a
"boca do estômago", dando-lhes maus sonhos, povoados de fantasmas
medonhos, de almas e assombrações. Eles logo despertam, mas não
podem gritar; vêem, ouvem, mas não podem mover-se, acabrunhados como
estão sob a pressão da "pisadeira".
Quem quiser
evitar o malefício do duende precisa, ao deitar-se, rezar três vezes
o padre-nosso-pequenino, cuja fórmula é a seguinte:
"Padre-nosso pequenino, me guiai por bom caminho, Santo Antonio e
meu padrinho que me pôs a cruz na testa. Sete anjos me acompanhem,
sete tochas me alumiem, pisadeira não me pise, nem de noite, nem de
dia, nem em hora nenhuma".
Feito isto, o sujeito benze-se nove vezes e pode depois dormir
tranqüilo a sono solto.
O coronel.Amaro era uma farmacologia ambulante; conhecia receitas
para curar todos os males que afligem os bichos domésticos e os
homens.
Contra a verruga do gado ensinava: "amarra-se o animal junto das
goteiras do telhado, em dia de chuva, unta-se a verruga com um
pedaço de toucinho, traçando três cruzes sobre ela; enterra-se
depois a meizinha no chão onde caem as goteiras, e de costas
voltadas para o animal doente, reza-se o Credo. Ao terminar a oração
cai a verruga". Bem vêem que isto é mais simples do que uma
cauterização.
II
0 meu jovial companheiro de viagem tinha nas rezas eficacíssimo
recurso para tudo. Observando-lhe eu que era triste de ver-se, neste
país de proverbial fertilidade, a estéril zona por onde rodávamos
havia algumas horas, disse-me que já conheceu essas terras cobertas
de florescentes algodoais; que, se aquela cultura agora aí de todo
se extinguira, era isso devido ao "curuquerê", a praga de lagartas
que em poucos dias arrasa as roças de algodão.
Não são os processos aperfeiçoados de cultura que nos faltam;
falta-nos a fé em Deus. E disse que sabia uma oração infalível
contra os curuquerês. Basta rezá-la simultaneamente em três cantos
da roça, deixando desimpedido o 4.° por onde fogem as longas filas
das lagartas, afugentadas pelo esconjuro.
Perguntei mais tarde a várias pessoas se reconheciam a eficácia da
receita; todos afirmaram-na categoricamente; apenas, não me
ensinavam a "reza", porque perderia a "virtude" se a dissessem fora
das roças.
O coronel confiou-me ainda várias rezas para todos os efeitos e
ocasiões. Ia a enveredar por uma Ave-Maria contra não sei que coisa,
quando o apito da locomotiva nos anunciou a estação de Sorocaba.
Escrever a história antiga de Sorocaba seria traçar a crônica das
vicissitudes por que tem passado o burro, desde os primordiais
tempos daquela terra, até à revolução progressista do vapor, que
levou por diante dos limpa-trilhos, atirando-a pela serra do Cubatão
abaixo, a prosperidade sorocabana na figura das tropas espantadas e
ao som de grande zurraria angustiosa.
No tempo das feiras, quanta vida ali! Pelas invernadas
circunjacentes, 80.000 burros, representantes (como produtos) de uma
florescentíssima indústria. Dentro da cidade, os muladeiros
argentários, cruzando garbosamente as praças, montados nos seus
altivos ginetes reluzentes de prataria. Sorocaba era uma cidade
argentina. Á ourivesaria de prata chegara a uma perfeição e
desenvolvimento extraordinários. O muladeiro trazia a tropa e
voltava com os luxuosos adornos dos arreios sorocabanos.
Nos bairros, hoje soturnos e despovoados, pululava uma ruidosa
multidão alegre e brilhante. Vinham mulheres de toda a parte que ai
estabeleciam, pelo tempo da feira, a colônia vagabunda do amor
venal. A cidade transformava-se durante meses num grande foco de
esplendores e de prostituição.
Hoje (Sorocaba tem um aspecto decrépito que entristece.
Imprevidente, não tratou de transformar as invernadas em lavouras, e
quando o burro fugiu espavorido pelos bufos do cavalo de fogo,
decaiu, porque a sua riqueza não tinha elementos de fixidez no solo.
Depois do burro, e só muito mais tarde, começou a cultivar o
algodão, enquanto o preço deste produto era exorbitantemente
remunerador; essa indústria hoje aí também está decadente.
Quem a degradou assim? Seriam os curuquerês do coronel Amaro? Não,
mas a concorrência dos Estados Unidos, com os seus processos
aperfeiçoados de cultura.
De Sorocaba gasta-se pouco à estação da Vileta, situada num planalto
de campos de excelentes pastagens. Notei lotes de terreno
enquadrados por valos; informaram-me que o sr. Mayrink, diretor da
Companhia Sorocabana, vai tentar naqueles terrenos, que dizem ser
fertilíssimos, a cultura do trigo.
Da Vileta à Estação do Ipanema, alguns minutos; aproveitei-os em
protestar a mais cordial simpatia ao meu companheiro de viagem, o
coronel Amaro, que seguia viagem para o sítio no município do Tietê.
No
Araçoiaba
I
Assentam as edificações da Fábrica na vertente oriental da montanha
Araçoiaba, à margem do riacho Ipanema, enfrentando •com um morro
mais baixo, cintado à meia altura pela linha férrea Sorocabana, que
aí tem a estação do Ipanema. , Remata este morro em uma esplanada de
campos nativos e de cerrados, que se dilatam até para além da
estação de Vileta, sendo grande parte destes terrenos compreendida
pelo perímetro da Fábrica.
Vista da estação, a Fábrica apresenta o aspecto de uma vila,
administrada por uma boa câmara municipal; pois há ordem nos
arruamentos e bela arborização nas praças.
As casas de moradia dos empregados, de construção uniforme, alvejam
na encosta da montanha, tendo por fundo de paisagem as verdes matas
do Araçoiaba.
O rio Ipanema, represo, dilata-se em grande lago de margens
sinuosas, com manchas, aqui e ali, à superfície d'água de nenúfares
e d'outras plantas aquáticas.
A um lado, as casarias das oficinas, de fundição, de refino, de
máquinas; a vasta galeria avarandada onde residem os operários,
sombreando-a um belo renque de frondentes paineiras, que também
vicejam nas outras ruas e praças, ao lado dos guapirubus e das
palmeiras.
Tudo aquilo respira um ar de tranqüilidade, de ordem e de paz;
parecendo mais uma estação termal desabitada, do que um
estabelecimento do governo.
A horas de trabalho, ninguém se vê desocupado, cruzando as ruas,
"sem ter que fazer". A atividade está toda concentrada nas oficinas,
junto dos fornos, das forjas, das máquinas de trabalhar o ferro. A
hora de começar ou largar o trabalho é marcada pelo apito de um
vapor que move o martelo de bater o ferro refinado.
Tem-se na Fábrica todos os recursos e regalos de uma cidade: hotel,
padaria, açougue, hospital, médico, farmácia, banda de música de
operários. O comércio de gêneros alimentícios, frutas e outros
artigos de consumo doméstico, é feito pelos caipiras das
circunvizinhanças, que para aí convergem, aos domingos, com os seus
cargueiros de provisões.
O corpo, vê-se, goza de todos os bens terrenos; quanto à -alma, o
capelão do estabelecimento, reverendo padre Gottone, encaminha-a na
direção do céu com uma missa diária, às 6 da manhã, perante um
número de fiéis relativamente restrito, constando dele celebrante,
do seu acólito e da imagem de S. João, o padroeiro da Fábrica.
No sr. padre Gottone contrastam singularmente a robustez moral com a
fragilidade corpórea; não que s. revma. maltrate a jejuns e cilícios
o terceiro inimigo da alma; antes, é a carne do vigário de Cristo
que se mostra de uma rebeldia inexplicável contra os cuidados
culinários de que é rodeada. Daí vem que o sr. capelão, possuindo um
corpo alentado, julga-se débil, e, procedendo de acordo com as suas
suspeitas, não raro ingere, à ceia, uma dúzia de ovos com algumas
chávenas de chá e muita compunção.
No mais, um sacerdote às direitas, de moralidade intemerata, de
profunda fé religiosa, assíduo aos ofícios, bom e carinhoso para as
crianças, mui temente de que o pecado não venha a gafar as ovelhas
confiadas à sua guarda.
Como administração oficial, a Fábrica do Ipanema é uma longa
história engraçadíssima, que vem vindo desde meados do
século.atrasado até agora cheia de episódios, de surpresas e de
tolices administrativas singulares. Como riqueza, porém, a Fábrica é
um Eldorado.
A Natureza foi assombrosamente pródiga naquele recanto de terra
brasileira e as riquezas minerais do Araçoiaba realizam a fábula da
perdiz que voava assada, já com o respectivo molho.
II
O minério do Ipanema é o mais rico do mundo; informam-me que contém
72% de ferro. Quanto à sua abundância, assim se exprime o coronel
Frederico Guilherme de Varnhagen, que foi diretor daquele
estabelecimento de 1815 a 1821, referindo-se ao grupo de montanhas
de formação metalúrgica que a fábrica explora, ou melhor, devera
explorar:
"Este grupo de montanhas tem cerca de 3 léguas de comprimento e
proporcionada largura. O trecho do morro é de granito; e de Norte a
Sul, isto é, no sentido longitudinal, é cortado por três grossos
veeiros de ferro, já magnético, já especular (proximamente de 7
metros de pujança). Há porém aos lados e pelo cimo bancos de chistos
de várias grés,, de pedra calcárea escura, de mármores, de azul da
Prússia, de pederneira, de grustein e até de formações auríferas. O
mineral "solto à superfície" do morro é tanto e tão rico, que creio
dele se poderia por "mais de cem anos" alimentar a "maior fábrica do
mundo", sem recorrer a trabalho algum de mineração".
Isto, se é muito como riqueza nacional, ainda inexplorada, importa,
contudo, grande desencanto para o turista que visita a Fábrica.
Eu, como todos os visitantes, tive curiosidade de ver as minas; lá
fui, e, em vez das grandes escavações que pensava encontrar, vi
apenas o minério acumulado à flor da terra, consistindo todo o
trabalho de mineração em carregar com êle as carroças de transporte.
Acima disse que a Natureza usou de assombrosa prodigalidade no
Ipanema; de fato: não só se acumula aí o minério de ferro, mas tudo
quanto pode facilitar a exploração dessas enormes riquezas: grandes
jazidas de calcáreo (do qual possuo um fragmento, colhido atoa na
pedreira: é um mármore lindíssimo, preto, listado de veias brancas,
e por certo, em competência estrangeira, mui próprio para quaisquer
trabalhos de marmoraria). Há ainda a grés refratária, para a
construção dos fornos altos; o minério pobre, usado como fundente,
etc. Tudo isso está quase à superfície do solo, no recanto da
montanha conhecido com o nome de Capuava. Para carrear esses
materiais, fácil trabalho: descem eles como que naturalmente pelo
morro abaixo até ás bocas dos fornos-altos, que os absorvem e
digerem no seu ventre de fogo, vomitando-os depois, em ondas de
ferro líquido, sobre as formas modeladas no chão em que assentam
aqueles fornos, no interior da oficina de fundição.
Este primeiro trabalho produz a guza, que, ou é vendida nesse
esta.do, ou passa para o forno de refino, na oficina contígua, sendo
depois batida por um grande martelo movido a água e outro a vapor,
transformando-se em barras de ferro refinado.
Confio da perspicácia do leitor que estará vendo claro na arte
metalúrgica, depois dessas explicações tão lúcidas; se assim, porém,
não é, passemos adiante, a informações mais compreensíveis.
Fora o martelo a vapor para bater o ferro refinado, todos os demais
maquinismos da Fábrica são movidos pelas águas do rio Ipanema, que,
represado à altura conveniente, fornece uma poderosa força motriz
gratuita, força que pode ser utilizada para mover outros maquinismos
que se estabeleçam além dos já existentes, prestando-se a isso a
declividade do terreno.
Desde já trata-se de dar um maior desenvolvimento à Fábrica,
elevando assim a produção atual que é de 3.000 kil. por dia, a
32.000 kil., sendo 12 de ferro batido e aço. Tal é o programa do
governo desde o ministério Sinimbu.
O ferro do Ipanema, confrontado com o melhor dos Estados Unidos,
leva vantagem sobre este. Na Exposição Industrial realizada o ano
passado no Rio de Janeiro, estiveram expostas rodas de. um e outro
ferro, que havia servido nos vagões da Estrada D. Pedro II; a
experiência provou a superioridade das rodas de ferro fundido
resfriadas na Fábrica do Ipanema. A companhia Carris Urbanos de S.
Paulo já começou também a adotá-las.
A excelência do ferro do Ipanema resulta não só da qualidade do
minério, como do emprego do carvão vegetal na fundição. O
combustível é fornecido pelas matas da Fábrica, cuja área florestal
abrange atualmente duas léguas quadradas. Sobre esta superfície está
espalhada uma população de 500 a 600 almas, compreendendo, além do
pessoal das oficinas, os carvoeiros, os caieiros, que vivem nas
matas, onde se ocupam na fabricação de cal e do carvão.
Grande número de operários é de antigos escravos da nação, libertos
pela lei de 28 de Setembro; alguns deles, nascidos e educados na
Fábrica, hoje ganham 6$000 diários como mestres de oficina.
A Fábrica de Ferro
I
A verdadeira existência da Fábrica de Ferro do Ipanema deve
contar-se de 1816 para cá, quando foi nomeado diretor do
estabelecimento o coronel Frederico Guilherme de Varnhagen.
Em breves traços, eis o que se passou até esse tempo:
Em 1589, o paulista Afonso Sardinha, andando a bater matos à procura
de ouro, fora ter ao morro do Araçoiaba, onde lhe constara haver
jazidas auríferas. Em vez de encontrar um filete de ouro, Sardinha
descobriu uma montanha de ferro, pródiga do minério mais rico e mais
puro que possa haver.
Sardinha contentou-se com o gato, visto não ter apanhado a lebre, e
construiu um forno catalão para preparar o ferro. Essa indústria
estava na sua idade de pedra; Sardinha, acabrunhado de dificuldades,
abandonou os trabalhos que iniciara.
Divergentes das informações de Azevedo Marques, tenho as seguintes:
Cerca do ano de 1600 um indivíduo tornou a encontrar as jazidas de
ferro do Araçoiaba, já então abandonadas e esquecidas. A descoberta
transpirou, chegando aos ouvidos do ouvidor da comarca de Itanhaém,
a qual abrangia dentro do seu perímetro as minas em questão. Este
ouvidor, cujo nome não lembra, veio pessoalmente verificar a
existência das jazidas metaliferas, achou-as de agrado, e para dar
um ar de sua graça, publicou alvará proibindo, sob pena de morte,
que alguém se estabelecesse nas terras do Araçoiaba, mandando,
concomitantemente, "levantar um pelourinho".
Eram uns magníficos homens os ouvidores; este sobretudo, previdente,
sabendo que a fundição do ferro necessitava de carvão vegetal,
queria poupar as matas que haviam de, no futuro, fornecer o
indispensável combustível.
Nesta segunda fase a Fábrica nenhum desenvolvimento teve e foi de
novo abandonada.
Em 1808, o Conde de Linhares, ministro de D. João VI, tendo em vista
libertar o país da dependência em que se achava perante a indústria
estrangeira, mandou fundar duas fábricas de ferro, uma em Minas
Gerais, outra nesta província, no Ipanema.
Para este fim veio da Europa o coronel Frederico Guilherme de
Varnhagen, que servia no exército português com o posto de capitão.
O velho conselheiro Martim Francisco, então inspetor das minas e
bosques, foi encarregado de demarcar a área florestal precisa para
os trabalhos da mineração, e de fazer outros necessários estudos.
Inaugurou-se de novo a Fábrica, constituída por empresa entre
particulares e o príncipe D. João, dirigida por uma junta diretora
da qual fazia também parte Varnhagen, como representante dos
acionistas particulares. Dirigia o serviço, como técnico, o sueco
Hadberg. Demarcou-se o distrito florestal, compreendendo 3741
hectares de matas, e mandou-se pagar as benfeitorias aos intrusos
que, apesar do pelourinho do ouvidor de Itanhaém, tinham-se
estabelecido no morro Araçoiaba, lavrando as terras.
Essas benfeitorias importam em 826$360. Hadberg com a sua colônia de
operários estabeleceu as forjas suecas para o "tratamento direto" do
ferro, sistema precário que só preparava o metal para a fabricação
de pequenos instrumentos de lavoura, mas imprestável para a fundição
de peças que exigissem grande resistência.
Por esse tempo veio ao Brasil o Barão Eschwege, diretor geral das
minas de Brunswick, honrem mui proficiente em metalurgia, o qual
escreveu posteriormente, lêmo-lo em Larousse, muitas obras sobre o
reino mineral do Brasil. Conversando Eschwege com Varnhagen,
combinaram, à vista da imperfeição do sistema de mineração usado
pelos suecos, que indispensável era adotar-se sistema mais
aperfeiçoado. O rei D. João VI mandou rescindir o contrato com o
sueco Hadberg, chamou a si toda a fábrica e nomeou seu diretor a
Varnhagen em 1816. Varnhagen constituiu os fornos altos (que hoje
ainda funcionam) e pela primeira vez no Ipanema correu o ferro
fundido, modelando-se com êle, no dia 1.° de novembro de 1818, três
grandes cruzes, uma das qu|ais vê-se ainda erecta à entrada do
estabelecimento, no terrapleno que forma a represa do riacho
Ipanema, e cujas águas são, como já dissemos, a força motriz dos
maquinismos da fábrica.
Para recompensar estes serviços, o rei elevou Varnhagen ao posto de
coronel e deu-lhe a Comenda de Cristo.
II
Varnhagen reconheceu desde logo a insuficiência da área florestal
demarcada pelo coronel Martim Francisco, em 1810, e mandou demarcar
nova área em 1820.
Sobreveio então a crise política, depois o juramento da
Constituição, criando-se os Conselhos Administrativos.
O Conselho ordena que Varnhagen jure a Constituição; replica este
que não é português, mas alemão. Insiste o Conselho, mandando que
Varnhagen ao menos faça jurar a dita Constituição pelos empregados
da Fábrica; responde este que comunicara aos seus subordinados a
ordem do Conselho. Disto proveio algum azedume de parte a parte e o
coronel Varnhagen pediu demissão do cargo de diretor da Fábrica, à
qual tantos serviços prestara, pretextanto ter necessidade de voltar
à Europa para educar seus filhos.
O Conselho Administrativo pediu então a Varnhagen que, visto
retirar-se, indicasse um oficial hábil para o substituir na direção
do estabelecimento; Varnhagen indicou dois.
Que fez o Conselho?
— Nomeou um terceiro!
Retirou-se Varnhagen para a Europa, levando em sua companhia seu
filho o jovem Francisco Adolfo de Varnhagen, o ilustre brasileiro
que depois se chamou o Visconde de Porto Seguro, com o qual teremos
de nos ocupar mais tarde.
Pela retirada
de Varnhagen deixou de realizar-se a aquisição da área que só mais
tarde, sob a atual administração do sr. dr. Mursa, foi adquirida,
quando já a proximidade da ferrovia Sorocabana muito elevara o valor
venal daquelas terras, que, oportunamente compradas, teriam custado
ao governo soma insignificante.
A Fábrica estava progressiva e rapidamente decaindo, pela
incapacidade dos seus diretores, de modo que em 1834, sendo
presidente desta província o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, foi
nomeado diretor daquele estabelecimento o alemão Major Bloem, que no
Pará prestara serviços à Independência, tendo anteriormente sentado
praça no exército brasileiro.
Bloém trouxe da Europa uma colônia alemã que prestou serviços à
Fábrica, até que em 1842, quando ela parecia dever entrar em nova
era de prosperidade, uma nova crise política veio de novo
paralisá-la. O Major Bloem, envolvido na luta civil, foi preso por
ordem do ulteriormente Marquês de Caxias. Caiu de novo a Fábrica em
abandono.
Em 1860 foi dissolvida, ordenando o governo que, em vez dela se
fundasse uma outra na província de Mato Grosso. Para lá foram
remetidos o pessoal técnico e os oficiais de ofício, escravos da
nação, ficando no Ipanema alguns velhos e inválidos, indo o resto
para a colônia do Itapura.
Este caso da peregrinação a Mato Grosso é de grande pilhéria. Para
lá seguiu tudo, pessoal e maquinismos, ao mando de um ilustre
desconhecido — o engenheiro alemão Rodolfo, que tempos antes havia
sido contratado na Europa para vir dirigir" o laboratório
pirotécnico do Rio de Janeiro, direção na qual revelou
extraordinária incapacidade,.
Ora, para recompensar o fiasco deste inhábil fogueteiro, foi que o
governo lhe confiou o encargo de fundar em Mato Grosso uma fábrica
de pólvora e outra de ferro; quando ninguém dava notícia de haver
naquela província minério de qualidade alguma.
Depois de cinco anos de infrutíferas pesquisas, o grande
metalurgista voltou ao Rio, sem haver descoberto ou fundado coisa
alguma; tendo ganho 10.000$000 anuais de ordenado, fora uma diária
de 10$000para cavalgadura.
Ora, se um burro ganhava aquela soma, quanto deveriam ganhar os
inventores e acoroçoadores dessa excursão de tão grande pilhéria?
O transporte dos materiais, do Ipanema a Mato Grosso, custou
22.000$000; parte deles ficou em caminho, e alguns até hoje
enferrujam-se ao sol, atirados sobre a praia da cidade de Santos,
perto da Alfândega.
Esteve a fábrica em abandono até 1865, ano em que lhe foi nomeado
diretor na pessoa do major de engenheiros, dr. Joaquim de Sousa
Mursa, a cuja inteligente direção' deve-se a prosperidade relativa
em que se acha hoje aquele estabelecimento. 1882.
Quadros a Lápis
Quem tem saúde, dinheiro e curiosidade visita a França, a Alemanha,
um pouco a Inglaterra, faz uma ascensão à Suíça e vai descansar
algum tempo em Itália.
É tão bom, na volta, ter qualquer coisa a contar do que se viu na
viagem; — os ruidosos "boulevards" parisienses; as margens
pitorescas do Danúbio; os Alpes suíços com os seus "chalets"
destacando na encosta das montanhas nevadas; a opulência londrina;
Roma com os seus monumentos históricos, as ruínas dos seus palácios
de mármore; e as suas campanhas que a nossa fantasia se compraz em
povoar com a graça bucólica da poesia virgiliana... é tão bom
podermos dizer: — em tal dia vi Gambetta, ou lord Fulano; — em tal
noite contemplei o vulto imponente da catedral de S. Pedro... oh!
que belo luar fazia!
Depois, em Veneza... quão doce é cismar ao balanço da gôndola, ouvir
a dolente ária que uma condessa romanesca, ali no palácio vizinho,
canta com a morbideza característica da italiana... e, eis porque,
quando se tem dinheiro e saúde, a gente vai correr terras
estrangeiras, para poder, na volta, contar aos que ficaram na
pátria: — estive em Paris, em Londres, em Roma...
Eu estive apenas rio Ipanema, mas cismei longas horas no meio dos
matos, no coração do Araçoiaba; contemplei o zimbório verdejante da
floresta; ouvi cantar a araponga, na doce hora do entardecer;
senti-me remoçar na solidão da Natureza.
A minha gôndola era a canoa caipira, e o lago aí estava
espraiando-se dormente pelas fraldas da montanha, com as suas rasas
ilhotas florescidas, batido em cheio, pelo claro luar destas tão
belas noites de verão.
Muitos dos
que me lêem agora já estiveram por certo nesses lugares, e acham,
porventura, que sou mais um paisagista do que um narrador, que me
demoro em pintar uma aquarela, quando apenas devia descrever o
quadro a traços de desenhos geométricos. Mas, é que eu trouxe um
lápis de turista e não o tiralinhas do agrimensor.
A poesia da natureza, a emoção do que esta em nós produz, é toda
relativa à impressionabilidade da alma humana; o contemplativo
comove-se perante o mesmo quadro incapaz de impressionar, de leve
sequer, o espírito prático do frio observador; nisto está a
divergência entre um poeta e um engenheiro. A uns, portanto, o
marulho dos córregos, o misterioso rumor das árvores, o céu
estrelado e a terra solitária; a outros, o barulho da água nas rodas
hidráulicas, e o silêncio amigo das equações do 2.° grau, com todos
os seus expoentes e coeficientes.
Ignoro quantas toneladas de combustível podem produzir as matas do
Araçoiaba; mas sei que as árvores são frondentes, que os pássaros
cantam na espessura da folhagem, que as águas correm marulhosas
sobre um leito de pedras, orlado de musgos, onde vêm banhar-se as
libélulas nas horas quentes do dia.
Uma excursão à montanha do Araçoiaba é cheia de atrativos. Sobe-se
por uma estrada de ferro em miniatura; o comboio compõe-se de um
carrinho aberto, podendo acomodar seis pessoas inclusive o sr. Cruz,
"chefe do tráfego", que arranja a manivela do breque; as rodas do
carro, de dois palmos de diâmetro, resvalam sobre trilhos, de 62
centímetros de bitola.
Estendem-se estes, num percurso de 4 e meio quilômetros, desde junto
dos fornos altos até a Capuara, servindo para transportar o minério
depois de reduzido.
Todo o visitante do Ipanema faz, necessariamente, uma. excursão no
"trenzinho", e a viagem não deixa de ter grande encanto.
Ao partir da Fábrica sobe-se por uma rampa de 12% de inclinação, e a
esta primeira rampa sucedem-se outras, intercaladas de planos
horizontais, até à Capuara, sendo os declives e os planos combinados
de forma que o trem roda por seu próprio impulso, do extremo
superior da linha até os fornos altos, onde os trilhos acabam por
uma contra-rampa.
Para a tração, dois animais atrelados fazem o efeito de locomotiva.
Quando o vapor diminui de força, isto é, quando afrouxam os músculos
da parelha, o sr. Cruz, chefe do tráfego, com um enérgico — Eh!
mula! — dá vigoroso e novo impulso à marcha.
Esta ascensão
desmente o verso do poeta:
"Olá, Veloso amigo, aquele outeiro,
É melhor de descer que de subir".
Aqui dá-se o contrário: subir é muito melhor, para o passageiro,
está visto; não há os sustos e as comoções nervosas da descida;
vai-se devagar, em toda a tranqüilidade dos nervos.
A descida, porém, principalmente na última rampa, faz arrepiar as
carnes aos que não estão acostumados àquela ginástica. O carrinho,
rodando pelos planos inclinados se o deixassem adquirir grande
velocidade, dificilmente o fariam parar na corrida. 12% de
inclinação, sobre trilhos, já é quase um precipício; o sr. Cruz,
porém, chama àquilo de suave ladeira.
A cada grito do passageiro amedrontado, responde êle
invariavelmente: "não precisa ter medo"! Esta é a fórmula de que usa
em todas as ocasiões, qualquer que seja o gênero e a eminência do
perigo.
Cerca de um quilômetro da partida, entram os trilhos pela mata
virgem, tornando-se então do maior encanto este passeio.
A meio caminho e à esquerda está a picada que vai ter a uma
anfractuosidade da montanha onde foi erigido o "monumento'' à
memória de Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto' Seguro.
O Monumento de Varnhagen
I
Agora que chego ao sopé do Monumento de Varnhagen, assoberba-me a
emoção. Sinto a palavra por demais pálida para reproduzi-lo em toda
sua imponente grandeza.
Os fortes abalos do sentimento estético são inenarráveis.
O Monumento de Varnhagen é ao mesmo tempo grandioso e mesquinho: —
Numa erma clareira do Araçoiaba, sobre modesta pilastra de pedra
grosseira, ergue-se a pequena cruz tosca de ferro, levantada à
memória do que morreu longe da pátria, ausente dela durante quase
toda a vida, mas "estremecendo-a" desde criança, honrando-a com seu
trabalho e com sua inteligência; e, até a hora derradeira,
lembrando-se desse recanto do mundo onde nascera, para pedir que aí
perpetuasse o testemunho do seu patriotismo numa legenda que deixou
ao morrer.
A cruz é um símbolo sempre
triste; mas ali, na soledade da floresta virgem, o merencóreo vulto
da Cruz de Varnhagen, com os braços estendidos na direção Norte-Sul,
enfrentando com o sol que além surge por detrás da serra, destaca-se
como uma nota de indefinível tristeza no fundo azul do céu iluminado
e glorioso!
Na face da pilastra, fronteira ao Levante, num escudo de ferro
fundido, lê-se a inscrição que Varnhagen deixara em seu testamento;
é o adeus nostálgico daquele grande espírito êxul na terra
estrangeira:
À MEMÓRIA
DE VARNHAGEN, VISCONDE DE
PORTO SEGURO,
NASCIDO NA TERRA FECUNDA DESCOBERTA
POR COLOMBO.
INICIADO POR SEU PAI NAS COISAS
GRANDES E ÚTEIS, AMOU SUA PÁTRIA
E ESCREVEU-LHE A HISTÓRIA.
SUA ALMA IMORTAL REÚNE AQUI TODAS
AS SUAS RECORDAÇÕES
Há alguma coisa de épico nesta legenda que o sol, de hoje em diante,
pelo decorrer dos tempos, iluminará todas as manhãs com seus
primeiros raios nascentes.
Como dissemos, no monumento de Varnhagen contrasta a mesquinhez da
matéria com a grandeza moral da idéia.
O pensamento aí simbolizado é o patriotismo do autor da "História
Geral do Brasil", que, 'tendo sempre vivido longe da terra natal,
trabalhando por honrá-la no estrangeiro, não queria que suspeitassem
que a olvidava.
Esta era a preocupação constante do seu espírito, mais de uma vez
manifestada.
Em 1873,
sendo então representante do Brasil na Áustria, e presidente da
comissão brasileira na exposição efetuada esse ano em Viena, o
Visconde de Porto Seguro, conversando com seu amigo o sr. dr. Mursa,
diretor da Fábrica do Ipanema, disse-lhe: "Se eu morrer longe do
Brasil, onde quer que seja, não quero sobre minha sepultura nem uma
lápide; mas peço que no Ipanema, onde nasci, onde meu pai trabalhou,
plantem num recanto solitário da mata uma cruz tosca de ferro
fundido da Fábrica, com a inscrição que deixarei em testamento, para
que a. todo tempo conste que, mesmo ausente da pátria, nunca a
esqueci".
Este desejo Varnhagen manifestou-o ainda, quando em sua última
viagem ao Brasil visitou o Ipanema a 28 de julho de 1877, um ano
antes de morrer. Passeando então com o sr. dr. Mursa pelas matas, do
Araçoiaba, indicou o lugar onde queria que se erguesse uma cruz à
sua memória, e nesse lugar está hoje o monumento.
Do termo inaugural, colocado dentro de uma caixa de ferro na base do
alicerce, consta que "tanto na escolha do local como na simplicidade
do monumento guardaram-se as expressas recomendações do Visconde de
Porto Seguro, deixadas em testamento". Aquele documento está
publicado no número 7.837 do "Correio Paulistano".
II
Varnhagen. que tinha firmados direitos à gratidão da pátria, queria
apenas aquela modesta recompensa — perpetuar seu nome no canto de
terra onde brincou infante. Seriam sugestões da vaidade ou a nobre
solicitação de su'alma brasileira, que, depois de enobrecida lá fora
nos países estranhos, queria reverter para o primeiro lar, donde
sairá infante e obscuro?
Para recomendá-lo à posteridade êle tinha o monumento das suas
obras; o desejo, portanto, de ter aquela cruz de ferro votada à sua
memória, no Ipanema, era mais do que amor à terra da pátria, era a
saudade do torrão natal, onde primeiro sentiu-se viver.
Em todas as suas obras Varnhagen, depois do título — Visconde de
Porto Seguro, escreve sempre: — (Natural de Sorocaba).
Êle foi modesto; pedia aos seus amigos — uma cruz tosca de ferro —
e a Natureza deu-lhe, numa garganta da montanha Araçoiaba, o mais
belo e o mais gigantesco dos pedestais, — dois enormes blocos de
grés sobrepostos um ao outro, de forma tal que mais parece havê-los
ali colocado uma vontade poderosa, do que a ação das forças naturais
inconscientes.
Chega-se ao Monumento por uma larga picada aberta na mata, subindo
em ladeira por entre belíssimas árvores que, entrecruzando a
ramaria, formam um toldo de verdura através do qual raro passa uma
beta de luz do sol, de modo que o caminho fica assombrado por uma
doce penumbra, mesmo alto dia, como se fora já a hora do crepúsculo.
Esta sombra e esse silêncio levam o espírito a íntimas meditações ;
vai a alma triste; mas ao chegar à clareira onde campeia a Cruz de
Varnhagen, rasga-se de repente o céu e senti-mo-nos tomados de um
grande deslumbramento.
A entrada da clareira duas grandes pedras, a um e outro lado da
picada, formam o digno prático desse templo da saudade, erguido em
meio da solidão, à memória do historiador brasileiro.
Adiantando-se por aquela angústia, penetra o visitante numa %
esplanada, a 800 metros de altura sobre o nível da Fábrica.
Aí está o Monumento de Porto Seguro, que consta, como já dissemos,
de uma pilastra de pedra encimada por uma cruz de ferro, assentando
sobre dois gigantescos blocos de grés.
O monumento, — materiais e mão de obra, — custou apenas 300$000;
entretanto aquilo é a coisa mais grandiosa que talvez haja em toda a
província de S. Paulo.
O sr. conselheiro João Alfredo quando em sua recente viagem ao
Ipanema visitou aquele sitio, disse: — Se por entre estas pedras se
despenhasse uma cascata, este seria um dos lugares mais belos do
Brasil!
Do alto do bloco superior, ao qual sobe-se por largos degraus
talhados na rocha, domina-se um soberbo panorama. A vista abrange
num raio de 30 ou 40 léguas o semicírculo do fronteiro horizonte
visual: dali se avistam as cidades de Itu e Sorocaba, D grupo de
casas da Estação de Vilela, algumas fazendas espalhadas no vale, e
lá em baixo a Fábrica de Ferro, à beira do lago.
E todos os dias o sol que nasce em frente bate naquela cruz e
naquela rocha — no coração imorredoiro onde veio aninhar-se a alma
de Varnhagem...
"Sua alma imortal reúne aqui todas as suas recordações".
O Visconde
de Porto Seguro
I
Leitor, pela primeira vez te apostrofo e pela penúltima te amofino
com o título e o assunto destes artigos.
Se neles me demoro mais do que tua paciência quer, é que me agrada
trazer a memória em demoradas digressões por estes lugares, onde me
ficaram muitas saudades da convivência de amigos e da beleza dos
sítios alpestres, que me são hoje doce reminiscência.
Vieste subindo comigo, bom ou mau grado teu, até o Calvário, que,
para este caso, é o Monumento de Varnhagen; dele te falei com afeto,
porque realmente é belo, e, mais ainda, beleza brasileira.
Procuro dar-te um quadro de paisagem paulista; dás-me em troca,
talvez, dois bocejos, sendo assim está recompensada minha boa
vontade.
Sabes quem é Arabi? como êle nasceu, viveu, insurgiu-se, batalhou,
foi vencido, processado e vai ser exilado? Por certo. Mas o Visconde
de Porto Seguro, conheces-lo?
Este lado simpático do seu patriotismo já to denunciamos:
orgulhava-se de ter aqui nascido; e, morrendo no meio dos
esplendores da corte de Viena, êle que fez uma longa carreira
brilhante pelo mundo, "reuniu todas as suas recordações" esparsas e
veio enfim repousar na solidão da montanha sorocabana, onde pediu
que lhe erguessem uma cruz de ferro.
Que fêz para justificar esse desejo? Procurou e conseguiu tornar-se
meritório: escreveu a "História Geral do Brasil", a para isso
exilou-se voluntariamente, andando a peregrinar pelos países, onde
havia espalhada a maior parte dos documentos da história brasileira.
Isto já era bastante, mas não foi tudo que fêz o Visconde de Porto
Seguro para merecer o direito de pagar à sua custa uma cruz de ferro
erguida sobre um penedo, no meio do mato.
A traços largos, eis o perfil do historiador brasileiro:
Nascido no Ipanema a 17 de fevereiro de 1819, seguiu ainda criança
para Europa, em companhia de seu pai, quando foi este demitido de
diretor da Fábrica.
Cursou as aulas da Escola Politécnica de Lisboa, distínguindo-se
pela sua grande aplicação e precoce talento. Concluído o curso,
entrou para o exército português, conseguindo o posto de 2.° tenente
de engenheiros. Sendo seu pai o .Coronel Frederico Guilherme amigo
de D. João VI, opunha-se a que Varnhagen se declarasse cidadão
brasileiro. Esta vontade foi respeitada enquanto viveu seu pai;
morto este, o joven Varnhagen reclamou seus direitos de filho do
Brasil, sendo então admitido no exército brasileiro com o mesmo
posto que tinha no português.
Serviu desde logo como adido de legação em vários países, procurando
por esse meio a oportunidade de estudar documentos da história
pátria que- jaziam desconhecidos nos arquivos desses países, e
reunindo materiais para a sua grande obra da História do Brasil.
Por ocasião da organização do corpo diplomático, feita pelo Visconde
de Uruguai, Varnhagen, que já era Capitão de Engenheiros, deixou o
serviço do exército, dedicando-se definitivamente à carreira
diplomática, movido por aquele patriótico fim a que já aludimos.
Serviu em quase toda a América do Pacífico, e na Europa, que o
saibamos, em Espanha, Holanda e Viena.
No Chile casou-se com uma senhora de rara distinção, dona Carmen,
hoje viscondessa de Porto Seguro.
Sempre ocupado no estudo da história pátria, percorria as
bibliotecas e os arquivos estrangeiros, e sempre que podia adquirir
um documento histórico precioso, o fazia mesmo com sacrifícios
pecuniários. Assim quando esteve no Peru, comprou a preciosa "Arte
de la lengoa guarany" do padre Montoya, e publicou-a à sua custa, em
1876.
Inocêncio da Silva, no seu "Dicionário Bibliográfico Português",
enumera, em um catálogo que confessa mui deficiente, 16 obras de
Varnhagen, já originais, já de autor estranho, mas comentadas e
esclarecidas pelo escritor brasileiro.
Essa enumeração omite outras obras publicadas posteriormente à data
em que escreveu o bibliográfo português: uma que possuímos
"L'origine Tourainienne des americains Tupis Caraibes et des anciens
egyptiens" (Viena 1876), aí não vem .mencionada, bem como vários
opúsculos.
II
Além das obras publicadas em. volume, Varnhagen deixou inúmeros
artigos nos jornais científicos e literários do seu tempo. Foi
talvez o mais assíduo colaborador da Revista do Instituto Histórico,
tendo sido presidente honorário desta sociedade.
Em. Viena,
conta-nos um amigo do finado, Varnhagen tinha no palacete que
habitava uma vasta sala de biblioteca, com várias mesas de trabalho,
em cada uma das quais estavam dispostos e ordenados os materiais
históricos para as obras em que simultaneamente trabalhava. Além da
"História da Independência", que deixou quasi ultimada, preparava
uma nova edição da "História do Brasil".
A "Gazeta de Notícias", em uma série de artigos recentemente
publicada a propósito da inauguração do "Monumento", dá copiosa
relação dos subsídios com que concorreu o Visconde de Porto Seguro
para a História do Brasil. Entretanto, na balança em que aquele
escritor (sob cuja erudita crítica julgamos reconhecer o ilustrado
sr. Capistrano de Abreu), coloca os feitos de Varnhagen, há tanto de
bem e tanto de mal dito, que-não sabemos qual mais pesa, se o louvor
ou o vitupério.
Sem podermos entrar na indagação dos defeitos e dos méritos
atribuídos à obra histórica de Varnhagen, se não opondo à opinião do
crítico do jornal fluminense outras de não somenos valia, uma
insinuação quiséramos recusar, que vem mais a propósito do assunto
que nos ocupa, — uma referência ao "monumento".
Insinua o escritor citado que o Visconde de Porto Seguro ordena em
testamento "que seja erigido um monumento à sua memória" e mais
adiante, falando da "História Geral", diz que "será daqui a séculos
consultada como dicionário de arcaísmos-1' ; mas que Varnhagen assim
não pensava, tanto que "a cada instante tomava umas certas atitudes
estudadas com vista aos pósteros, lembrando, aqui uma estátua, além
uma capelinha etc."
Procuramos ler o testamento do Visconde de Porto Seguro a ver em que
termos êle "ordenava um monumento à sua memória", para concluir se
ordem havia ou se modesto desejo de ter uma cruz funerária alí perto
do lugar em que teve o berço, conforme de viva voz por vezes dissera
a amigos ; não pude ver a disposição testamentaria, mas estou antes
pelo desejo do brasileiro saudoso do que pela vaidade do
historiador.
Outra insinuação do ilustrado escritor da folha fluminense é a que
põe em dúvida a probidade literária de Varnhagen, nestes têrmos:
"Há um livro entre nós publicado sobre o distrito diamantino. ..
... Neste livro reclama-se para Ferreira Câmara, e nega-se
documentalmente a Frederico de Varnhagen, pai do historiador, a
prioridade na fundição em grande de ferro. Pois Varnhagen finge que
não conhece este livro... Enfim, é possível que Varnhagen não
conhecesse o livro; mas é tão difícil..."
Supomos ser o livro aludido as — "Memórias do. Distrito Diamantino",
de Felício dos Santos; procuramo-lo aqui nas livrarias e em algumas
bibliotecas particulares, não o encontrando: de modo que estamos por
agora inibidos de ter maiores esclarecimentos sobre esse ponto
controverso da nossa história industrial.
Varnhagen, à pág. 1166 a 67 — da "História Geral", alude, também com
documentos, à tentativa de fundição do ferro em fornos altos, feita
pelo desembargador Câmara no morro do Pilar, em Minas. Esta
tentativa malograda, creio ser a mesma a que igualmente alude o
escritor da "Gazeta de Notícias", e. se valiosas também são as
autoridades que Varnhagen cita, parece que com razão podia êle
atribuir a seu pai a prioridade da fundição do ferro em grande, sem
fingir ignorar documentos em contrário.
Esta questão, tenho em peito oportunamente averiguá-la, ao menos
para que a admiração que sinto pelo historiador brasileiro não seja
diminuída com o meu receio de o objeto dela ser um homem Ímprobo.
E mais me custa a aceitar a insinuação quando confesso para pôr em
relevo a retidão escrupulosa do espírito de Varnhagen o seguinte
fato:
Apadrinhando êle a idéia da fundação de uma nova capital do Império
em um ponto do interior; tendo muito o assunto e até indicado o
lugar em que, a seu ver, devia ser fundada a futura capital; e, não
querendo exclusivamente fiar-se nas indicações das cartas
geográficas e em informações particulares, fêz uma longa e penosa
viagem para conhecer "de visu" a região que indicava como própria
para capital do Brasil: ora, proceder assim é ter consciência
escrupulosa, incapaz de intencionalmente faltar à verdade histórica,
nem mesmo solicitada pelo sentimento do amor filial.
Monumento ao Visconde de Porto Seguro
I
Inaugurou-se no dia 10 do corrente, na Fábrica de Ferro do Ipanema,
o monumento elevado à memória do grande cidadão F. A. Varnhagen,
Visconde de Porto Seguro.
Varnhagen, em
disposição da última vontade, determinara a ereção desse singelo
padrão de memória, na Fábrica de ferro do Ipanema, onde nasceu,
quando era diretor daquele estabelecimento seu pai, o coronel
Frederico Guilherme de Varnhagen, direção que exerceu desde o ano de
1815 até 1821, podendo ser considerado o verdadeiro fundador da
Fábrica do Ipanema, pois sob sua administração executaram-se as
primeiras reformas que constituíram a Fábrica na possibilidade de
funcionar regularmente, merecendo entre elas especial referência a
construção dos fornos altos.
Nascido na Fábrica do Ipanema, tendo aí passado parte da sua
infância, o Visconde de Porto Seguro quis deixar perpetuado o seu
nome nesse recanto da pátria onde viu a luz do dia, e ao qual alia
nobres recordações à memória de seu pai.
Tanta importância atribuía o ilustre historiador brasileiro à ereção
desse monumento, que a recomendara, como dissemos, em disposição de
última vontade.
A sra. Viscondessa de Porto Seguro, viúva do finado Visconde do
mesmo título, para dar cumprimento àquela vontade tantas vezes e tão
solenemente manifestada, confiou a um amigo da família, o sr.
comendador Fidelis Nepomuceno Prates, a missão de fazer levantar o
monumento.
Era esta a última das cláusulas do testamento do Visconde de Porto
Seguro, cujo cumprimento faltava para dar àquele instrumento inteira
execução.
"A convite do sr. dr. Mursa, digno diretor da Fábrica do Ipanema,
segue hoje para esse estabelecimento, com o fim de visitar o
monumento, e sobre êle escrever circunstanciada notícia, o nosso
colega de redação sr. dr. Ezequiel Freire.
Publicaremos, em tempo oportuno, as correspondências que a este
respeito por êle nos forem enviadas.
Damos em seguida cópia da ata inaugural do monumento, e do termo
colocado nos alicerces".
II
(Cópia)
Termo de inauguração do monumento elevado à memória do Visconde de
Porto Seguro, por ordem da exma. sra. Viscondessa de Porto Seguro, e
em conformidade dos desejos do seu falecido esposo.
Aos dez dias
do mês de novembro de mil oitocentos e oitenta e dois, achando-se
presentes o sr. Comendador Fidelis Nepomuceno Prates, representante
da exma. sra. Viscondessa de Porto Seguro, o Diretor e mais
empregados desta fábrica e diversos cidadãos que assinam este;
achando-se concluídas as obras do dito monumento, cuja pedra
fundamental foi colocada no memorável dia Sete de Setembro, do
corrente ano, foi este inaugurado pelo mesmo sr. Comendador Fidelis
Nepomuceno Prates.
O dito monumento compõe-se de uma grande cruz de ferro fundido,
presa a uma pilastra com três degraus, assentando sobre um penedo de
grés, que no alto do morro Araçoiaba, fica saliente e olha para o
oriente. Na frente da pilastra, acha-se um escudo de ferro fundido
com a seguinte inscrição, deixada em seu testamento pelo mesmo
Visconde de Porto Seguro: "À memória de Varnhagen, Visconde de Porto
Seguro. Nascido na terra fecunda descoberta por Colombo. Iniciado
por seu pai, nas coisas grandes e úteis. Estremeceu sua pátria e
escreveu-lhe.a história. Sua alma imortal reúne aqui todas as suas
recordações"'
Na face oposta da pilastra está gravado o seguinte: "Nasceu nesta
fábrica, a 17 de fevereiro de 1816; faleceu a 29 de junho de 1878 em
Viena d'Áustria, onde repousam seus restos mortais".
Na escolha do lugar e na simplicidade do monumento, guardaram-se as
expressas recomendações do mesmo Visconde, deixadas em seu
testamento, e no pedido que verbalmente fez ao diretor desta
fábrica, quando a visitou pela última vez em 28 de junho de 1877.
Dentro de uma caixa colocada na base do alicerce foi encerrado um
termo, assinado pelos empregados da administração da fábrica e'
mestres .das diversas oficinas (cuja cópia se junta a este) bem como
os objetos mencionados no mesmo termo.
Para constar, lavrou-se o presente termo que vai assinado pelas
pessoas presentes.
S. João do Ipanema, 10 de novembro de 1882.
Fidelis Nepomuceno Prates; o diretor, Joaquim de Sousa Mursa;
ajudante, Leandro Dupré ; Joaquim António Pinto Martins ; Felisberto
N. Prates; almoxarife, M. Francisco da Graça Martins; escriturário,
J. Dias da Costa; Alfredo Prates; desenhista,* Alfred Modrach; fiel
do almoxarife, Luís Augusto Mascarenhas; Augusto Luís Pinto Martins;
eng. de Minas de Freiberg, Alemanha, Otto Drude; capelão, Padre
Alberto Francisco Gattone; médico, dr. Raimundo J. de Andrade; d.
Laura Clementina de Sousa Mursa.
III
"Termo colocado na caixa encerrada no alicerce do monumento elevado
à memória do Visconde de Porto Seguro".
Aos sete dias do mês de setembro, do ano de mil oitocentos e oitenta
e dois, foi colocada esta caixa no alicerce deste monumento, elevado
à memória do exmo. sr. Visconde de Porto Seguro, por ordem da exma.
sra. Viscondessa de .Porto Seguro, em conformidade dos desejos de
seu falecido esposo.
Para relembrar aos vindouros esta época, foram encerrados dentro da
dita caixa, os seguintes objetos:
Uma breve notícia sobre o mesmo Visconde de Porto Seguro, cujo nome,
por seus serviços e escritos, está ligado à história pátria.
Amostras dos produtos desta fábrica, onde nasceu o mesmo Visconde
por cuja prosperidade sempre se empenhou.
Os números dos jornais seguintes publicados hoje a saber: "Correio
Paulistano", "Província de S. Paulo" e "Ipiranga", todos da capital;
e o "Diário de Sorocaba" da cidade do mesmo nome.
Elevando suas preces ao altíssimo, pelo repouso da alma do ilustre
varão que esta memória recomenda à posteridade, os abaixo assinados,
empregados da administração e mestres das oficinas deste
estabelecimento, fazem também votos, pela prosperidade da indústria
siderotécnica nacional, de que são hoje simples operários e a que
está ligado, como fundador, o nome do pai do ilustre Visconde, o
coronel Frederico Guilherme de Varnhagen.
Fábrica de Ferro de S. João do Ipanema, província de S. Paulo 7 de
setembro de 1882, sexagésimo aniversário da Independência e do
Império.
Joaquim de Sousa Mursa — diretor, Leandro Dupré — ajudante, José
Dias da Costa — escriturário, Martim Francisco da Graça Martins —
almoxarife, Florentino Neves de Araújo — agente, dr. Raimundo José
de Andrade — médico, Padre Alberto Gattone — capelão, Felipe Stoft —
mestre da oficina de máquinas, André Aussenect — mestre do refino,
Júlio César Tietê — mestre da fundição, João André Múller — mestre
da carpintaria, Francisco Banch — mestre da. modelação, Jacob Barth
— mestre de pedreiro, Cari von Merkatz — encarregado dos bosques,
Alfredo Modrach — desenhista, Giovanni Rossini — empreiteiro.
Atesto que esta cópia está conforme o original.
Ipanema, 10 de
novembro de 1882.
O Diretor
(a) Joaquim de Sousa Mursa.
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