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"Nosso Grupo de Genealogia da Familia Freire será tão forte quanto seus membros o façam"

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SOROCABA (1)

                                                        Ezequiel Freire

"Vaguei por Caçapava,
"Por Guaratinguetá.
"Por Pindamonhangaba,
"Por Jacarepaguá"


ORIGENS

I


Em 1654 o dr. Ferreira Braga, perdão, o paulista Baltasar Fernandes, em companhia de seus dois genros André e Bartolomeu de Zunega, emigrou de Parnaíba, indo estabelecer-se com sua família e a dêles na distância de três léguas do morro de Biraçoiaba, atual Fábrica de Ferro do Ipanema, fundando aí uma capela dedicada à "Senhora da Ponte".

Foi a capela elevada a vila em data de três de março de 1661, sendo governador geral — Salvador Correia de Sá e Benevides.

Foi a vila elevada a cidade por lei provincial de 5 de fevereiro de 1842.

Azevedo Marques, donde havemos as notas supra, dá para Sorocaba o significado etimológico, investigado por Martius, de — "lugar em que a queda das águas produz covas".

(1) Em vista de constituir precioso depoimento da época — já lá se vão quase trinta e cinco anos — reproduz a nossa revista as impressões do ilustre intelectual Ezequiel Freire em viagem a Sorocaba, cidade sobre a qual nos legou êle um valioso repositório de informações, nele incluindo dados sobre as famosas minas e fábrica de ferro do Ipanema e sobre o monumento ali erigido ao grande historiador Varnhagen. A nossa reprodução é feita das reportagens do inspirado vate resendense publicadas em março e abril de 1919, no jornal "Cruzeiro do Sul", editado em Sorocaba.

Não sei donde razão houveram para tal nome darem à capela da "Senhora da Ponte" os sucessores de Baltasar Fernandes.

Não vi covas, nem buracos de espécie alguma, quer na cidade, que é uma das mais asseadamente mantidas do interior, quer nas cochilhas circundantes, onde até as "bossorocas" faltam, mui freqüentes, entretanto, nos campos nativos de solo areento, como os sorocabanos.

Sob outros aspectos:

Três fases podem ser assinaladas na história de Sorocaba: — a fase "burrífica", a algodoeira e a política, ou politiqueira, à vontade.

A primeira decorre sob o reinado anônimo dos antigos muladeiros, que labutavam no comércio das tropas, concentrando anualmente em Sorocaba, por ocasião das feiras, entre sessenta e cem mil bestas.

Cabe, pois, à velha cidade de Baltasar Fernandes a glória indisputada de haver fornecido de burros o resto desta e as províncias limítrofes.

Desses periódicos êxodos de muares sorocabanos por toda a parte há vestígios. Nota-se mesmo que por demais prolificaram os emigrados já reproduzindo-se em unidades íntegras ("Fulano é um burro", diz-se por aí, nas palestras, nas polêmicas jornalísticas, nas discussões parlamentares) ; — já temperando os humanos em quantidades fracionarias; — "forte pedaço d'asno'' chama-se por todos os cantos, acerca dos mais conspícuos sujeitos.

A segunda fase decorre entre os anos de 186 e tantos e 1886, sob o reinado absoluto do sr. Mateus Mailaski, prestante e prestimoso cidadão polaco, assinalando-se esta época pela prosperidade — cultura e manufatura da indústria algodoeira, por aquele cidadão fomentada.

O fato culminante do domínio Mailaski foi a construção do Tonel das Danaides, denominado por um pudico eufemismo administrativo — "Estrada de Ferro Sorocabana".

Dezoito anos hão sido consumidos numa contínua e tenaz quão infrutífera tentativa de encher-se o dito tonel; operação para a qual concorreram os acionistas e concorre ainda a Província, com a contumácia e a improficuidade de um córrego a engolfar-se em; sorvedouro insondável.

O próprio inventor daquele Maelstron de sorver dinheiro, um dia, inadvertidamente, foi a sondar-lhe as profundezas; mas o remoinho colheu-o no seu vórtice, sugou-o, como se se tratasse de um saco de dinheiro; e cuspiu-o para. fora, como a uma burra vazia, sem prestígio e sem poder. — Ainda desta vez cumpriu a "Sorocabana" a sua sina originária — de sorvedoiro.

A terceira e última fase — "le roi est mort, vive le roi!" — vem do destronamento d'El-Rei Mailaski, e decorre ainda sob a realeza política do dr. Ferreira Braga, com sintomas intermitentes de bruxoleamento.

Que El-Rei vigente se aprecate e não cochile à sombra dos louros colhidos; — há quem aguarde desperto: as ambições por via de regra não dormem.


II


Teve Sorocaba uma vida brilhante, enquanto foi empório comercial de muares.

Nos meses de feira a animação era enorme. — Os muladeiros traziam tropas do Paraná e Rio Grande, e voltavam, levando em troca dinheiro amoedado. Durante a permanência deles, giravam abundantes, das suas guaiacas de couro para as dispersoras mãos das hetairas — as onças e os patacões. — Gente de costumes livres, entediados pelas abstinências dos prazeres durante as longas noites do pouso, agora, aqui chegados, vendida a mulada, embolsado o dinheiro — toca a folgar!

Daí um grande comércio de amor venal. Bandos de "chinas" forasteiras acudiam ao tinir do oiro, ávidas, sabedoras do apetite e da generosidade do muladeiro dinheiroso. Contam velhos desses tempos que "era um Deus nos acuda" aquilo!

Pelas ruas dos subúrbios, em pleno dia, no bairro da Ponte principalmente, floriam moças alegres, enroupadas de sedas vistosas, saias de chamalotes furta-côres com grandes ramagens de tons variegados formando largos e pesados barrados, frente curta descobrindo os tornozelos nus e os pés de mimosas vadias metidos em chinelinhas baianas de marroquim vermelho ou de belbutine bordada a lantejoulas.

Entrecruzavam-se pelas lojas dos ourives à compra das belas arrecadas de filigrana de prata, e iam alegres, falando alto, com uma grande flor metida nos cabelos arrepiados ainda pelas carícias amorosas da véspera; enquanto pelas ruas areentas e faiscantes, sob o sol esbrazeador, os muladeiros garbosos faziam tinir a ferragem dos seus lagoais de buxo, árdegos e nédios, ajaesados de prata em todos os aviamentos dos arreios.

A riqueza do "apero" era o apanágio do rico muladeiro; por isso um grande garbo para êle era ter o seu pampa de estimação coberto de prata. De prata eram os estribos de alta picaria, finamente trabalhados, bem como os longos passadores tubulares dos loros; peitoral, maneador, buçaletes, rédeas e cabeçada, tudo de trancelim de prata delicadamente entretecido, cintilava ao sol, ao elegante curvetear dos cavalos de luxo estimulados pelo tilintar das chilenas do cavaleiro.

E toca a tirar desforra das longas noites solitárias no rancho do pouso, dormidas ao relento às vezes, durante a longa travessia da viagem!

No intervalo, entre feira e feira, amortecia o mercado, e debandavam as Lais educadas naquela escola transitória do amor viajado. Algumas tornaram-se legendárias noutras partes e mantiveram famoso o nome sorocabano.

Além do burro e da hetaira, Sorocaba exportava artefatos de metal, arreios, tecidos de couro, lã e linha. Todas estas indústrias, fora a última que ainda se mantém próspera pelo fabrico doméstico das redes de balanço, definharam, e vão sendo suplantadas pelas suas congêneres do Rio Grande e Paraná.


III


Três agradáveis dias passei em Sorocaba, amenizados pela cordial hospitalidade do meu amigo Francisco Teixeira de Sousa Leite, cavalheiro cuja amabilidade é ainda maior que o nome. Em sua companhia percorri a cidade, que tem, como todas do interior, o aspecto calmo e morto resultante da falta de bulício comercial; mas que possui, compensadoramente, excelentes paisagens e deliciosos pontos de vista.

Assim, do cemitério, sito numa eminência, e cortado por um duplo renque de velhas casuarinas alternadas com guapirubus frondosos, desfruta-se belo panorama da cidade.

Outro sítio belíssimo, donde a vista se espraia por extensas campinas e matagais, é a "Chácara da Saúde", um dos mais confortáveis sanatórios que possam encontrar os débeis, os convalescentes, todos quantos necessitem de ares restauradores.

A "Chácara da Saúde", fundada pelo dr. Nicolau Vergueiro, exclusivamente destinada à convalescença e restauração dos doentes, não recebe pessoas afetadas de moléstias contagiosas. Está situada num planalto, dominando extensas terras, sendo que os arredores do prédio são de terrenos areentos, muito enxutos, plantados de vinhedos e cereais. O edifício é vasto, alto, ventilado, inundado de luz, mantido com muita ordem e meticuloso asseio. Entretanto a modéstia do proprietário, que não anuncia o seu estabelecimento em retumbantes reclames, faz com que não seja a "Chácara da Saúde" tão freqüentada quanto era de esperar, atenta a excelência dos ares da localidade, e a confortável hospedagem que oferece.

Na cidade visitei o que de curioso havia. É digno de menção o "Gabinete de Leitura", perfeitamente instalado, com provida livraria, excelente salão de leitura e sala de palestra. Fundado pelos auspícios do sr. Mateus Mailaski, inaugurou-se em janeiro de 1869. Atualmente funciona em prédio próprio,, tendo por presidente e principal benfeitor o dr. Olivério Pilar.

A indústria algodoeira teve sua época de florescimento em Sorocaba entre os anos de 1870 e 1874, quando, em conseqüência da guerra dos Estados Unidos, o algodão alcançou o enorme preço de 30$000 a arroba; preço que hoje oscila entre 6 e 7$000.

Apesar da decadência do valor do gênero, o município não abandonou de todo aquela cultura; e é da produção da lavoura regional que se alimenta a importante fábrica de tecidos do sr. Manuel José da Fonseca.

Fundado em 1881 tem tido próspera existência este estabelecimento onde funcionam atualmente 65 teares, dando serviço a 250 operários, quase todos nacionais.

Indústria outrora florescentíssima em Sorocaba, hoje deperecendo em triste abandono, é a sua famosa ourivesaria artística de prata e ferro, quase de todo atualmente suplantada pela concorrência de produtos de fancaria importados do Rio Grande.

A indústria dos arreios, embora decadente quanto à delicadeza artística dos artefatos, mantém-se entretanto próspera como gênero comercial. As transações sobre obras de couro sobem a 500 contos anualmente, sendo feito na terra grande parte do fornecimento.

Característica e simpática indústria doméstica sorocabana é a de tecelagem de redes de algodão. Neste gênero, a velha cidade de Ferreira Braga, digo, de Baltasar Fernandes, não tem competidora. Vi-as belíssimas, entretecidas de fios multicores formando desenhos elegantes, algumas de solferino e preto mesclados, outras adornadas com plumas de pássaros, muito ricas. Pena é que a habilidade das tecedeiras sorocabanas não seja aproveitada para a manipulação da seda nesse e em outros artefatos de ornamentação luxuosa, como cortinas, reposteiros etc.

O cuidado pela instrução documenta-se em sete escolas públicas de ambos os sexos. Funcionam igualmente seis colégios particulares, sendo merecedor de especial menção o "Liceu Municipal", fundado e mantido pela câmara, onde são lecionadas, além dos elementos de contabilidade, as línguas portuguesa, francesa, inglesa e latina. O distinto professor do Liceu, sr. Artur Gomes, obteve o lugar por concurso.

Umas das excursões obrigadas para o turista visitante da cidade, é ao "Salto do Votorantim", formado pelo rio Sorocaba. Facilmente accessível por caminho de tróli, o Votorantim oferece à contemplação do espectador impressionável uma das mais belas cenas da Natureza agreste.

Plena mata. — Angustiado entre altas penedias, precipita-se o rio por boqueirão de ásperas rochas, formando três saltos de aspecto ao mesmo tempo gracioso e augusto; porquanto, ora nos amedronta o precipício em que as águas estrondeando se engolfam; ora nos enfeitiçam a vista os policromos efeitos da luz solar ferindo de soslaio a atmosfera nevoenta, e iluminando a paisagem com os cambiantes matizes do arco-íris.

A cachoeira cataratando absorve no seu fragor perpétuo todos os outros rumores da estância ;

ante o cheiroso corimbo de uma trepadeira silvestre paira adejando um beija-flor de penas rútilas;

pousando na hástea flexível de uma taquara, sobranceiro ao abismo, o martim-pescador perscruta e aguarda ;

enquanto à frol d'água cintila o fugidio e prateado reflexo dos alambaris brincando no remanso em que se aquieta o rio antes de dar o pulo ao abismo...


DE SÃO PAULO A IPANEMA
A queda no sol
I


Acordar um pouco mais cedo; saudar o sol na fímbria do oriente; respirar uma larga onda de ar fresco, surpreender as flores no "negligè" da manhã, ainda borrifadas do orvalho da noite, como uma face rosada que sai do banho, aspirar-lhes o aroma condensado na corola mal aberta; alegrarmos a alma com a pura luz do alvorecer, ouvir os primeiros argentinos gorgeios d'ave; sentir mais intensa a vida, mais juvenil o coração, 'mais risonha a fantasia, toda em alvoroço a alma; — eis o que bem compensa e sobejamente paga o sono interrompido da manhã e o trabalho de aprestar a viagem.

Madrugada! doce hora amiga, quão raras vezes te vivem os sonolentos burgueses, encasulados até alta-manhã nas estreitas alcovas, abafadiças e doentias.

E, lá fora, já andou longo caminho o sol, já não há .nem orvalho na folhagem, nem frescura dos ares; já emudecem na sombra os pássaros, quando o dorminhoco estremunha, mal desperto, no primeiro espreguiçamento, abrindo largamente a boca em grande bocejo mole e fastiento.

E o trem lá segue, pelas terras em fora, ruidoso, deslisando no plaino da linha, aos bufos precipites da locomotiva.

No interior do vagão, com as vidraças erguidas por que não entrem lufadas do trio ar matutino, cabeceia o passageiro sobre as notícias do jornal do dia, ou, acomodado a um canto, reata o fio do sonho interrompido...

... sonho ou realidade!...

... a Terra fôra-se a pouco e pouco evaporando: A princípio, o veio dos córregos, os ribeiros, os lagos de inverno que a chuva forma nas baixas campinas; depois, os grandes rios; por fim, os vastos estuários dos oceanos.

Onde fora o mar era agora o extenso e escuro abismo, vestido de uma vegetação gigantesca e estranha entre cujo enredo se debatiam os colossais monstros marinhos ainda sobreviventes à secura da águas.

De espaço a espaço, no cimo dos bancos de areias ou dos abrolhos de pedras, outrora à flor das ondas, apareciam as quilhas dos navios afundidos na perigosa travessia dos mares; ali eram os fabulosos tesouros submersos com os galeões das frotas que transportavam para a cúpida Europa o ouro e as pedras preciosas arrancadas do seio das virgens terras americanas; ali estavam os capítulos da história trágica de todos os naufrágios notados nas carcaças apodrecidas das naus e das galeras que boiavam no plaino líquido, quando os oceanos se estendiam de continente a continente, ocupando duas terças partes da Terra.

A enorme massa d'águas evaporada envolvia o. globo de uma espessa atmosfera opaca e densa; jazia a esfera em lututulenta penumbra, impenetrável aos raios do sol.

Apenas das bandas do Levante, circundada por uma auréola afogueada, brilhava uma grande estrela imensamente luminosa, projetando obliquamente no espaço enevoado um peixe recurvo de raios, de uma luz branca e crua como um alfange de aço reluzente.

Aquele enorme globo de fogo parecia aproximar-se da Terra com uma rapidez surpreendentemente veloce. À proporção que o seu disco se avoluma, a temperatura da atmosfera terrestre subia a um grau extremo. Estalavam os termômetros pela dilatação extraordinária do mercúrio. Grandes bandos de aves cortavam vertiginosamente os ares soltando pios medonhos, depois caíam, uma a uma, asfixiadas pelo calor. Foram-se as folhas das árvores encurvando, contorcendo-se, murchando: de repente a ramaria das matas pegava fogo e a conflagração estendia-se de serra a serra. Negrejava a fumaça nos ares, as labaredas dos grandes incêndios lambiam a face desolada dos céus. A terra em breve era uma imensa fornalha; a vida ia-se pouco a pouco aniquilando.


II


0 homem só, por um inexplicável fenômeno, resistia ao aniquilamento geral dos seres; guardava-o Deus, talvez, para testemunhar o fim do mundo; dava-lhe tempo para o arrependimento e para a oração; e o Homem, em vez de orar, blasfemava.

Atônito, assombrado, quase insensível pela grandeza do pavor, o Homem, cerrando os punhos, ameaçava os céus e apostrofava a catástrofe.
Todo o reino orgânico morrera. A própria Terra dissolvía-se em poeira e torvelinhava nos abismos.

Fundiam-se os minerais escorrendo pesadamente, em rios de fogo líquido, no dorso nu das serras, e iam, precipitando-se pelas escaras abertas na crosta terrestre, chocar-se, em medonhos conflitos, com as forças plutônicas que irrompiam do interior do globo. Depois, transbordando, renovam um oceano de fogo no leito seco dos oceanos evaporados.

O que se passava na Terra parecia não ser mais do que um episódio na catástrofe geral dos mundos.

Havia, por certo, a mesma luta por todo o infinito sideral.

De espaço a espaço, enormes estrondos pareciam anunciar que mais um planeta arrebentara numa suprema explosão!
Outras vezes, um grande deslumbramento! ' Era uma esfera, que, desprendida do seu sistema planetário, precipitava-se pelos infinitos espaços, atraída para o turbilhão central da Universo.

Dava-se um profundo desequilíbrio na harmonia geral do Cosmos, e a Terra revoluteava, como um grão de poeira, no torvelinho caótico dos mundos dissolvidos!

Eu admirava surpreso o magnífico espetáculo, surpreso, porém orgulhoso de acabar tragicamente.

A contemplação do caos dava-me uma calma relativa ao espírito. Que magnífico assunto! exclamava. E inscrevia algumas notas na minha carteira de viagem.

A grande estrela caudata, que a princípio surgira no oriente, levava-nos, agora, na sua vertiginosa corrida em direção ao sol.

Não só nós; iam também, arrastando na enorme cauda luminosa, outros mundos que ela atraíra nas suas correrias pelos espaços interplanetários.

Íamos todos, a Terra, a Lua, o Touro, as duas Ursas, o singular Scorpião, as Cadelas das Circes, quase toda a bicharia sideral, esbarrando-nos uns nos outros, abalroando-nos, atraídos, repelidos, num torvelinho doido, estontecedor...

Súbito, um medonho estrondo! adeus mundo! A Terra acabava de precipitar-se no âmago incandescente do sol!

0 cataclismo, entretanto, não se deu sem algum abalo. Dos meus companheiros de viagem não sei se muitos se contundiram. Quanto a mim, senti uma forte pancada no crâneo; abri os olhos; — estávamos na estação do Barueri, da ferrovia Sorocabana.

0 abalo que me despertara fora ocasionado por um contra-choque do trem ao estacar repentinamente em frente à plataforma.
Olhei para os circunstantes, para os curiosos da estação, para a paisagem em frente; palpei-me; toquei a almofada do recosto em que vinha reclinado.

Custava-me crer no que via, a readquirir a realidade das coisas.. .

— Pois então, não se acabou o mundo? perguntei ao vizinho da frente.
— Não, senhor, respondeu-me convictamente o coronel Amaro.
— Pois o Cometa, insisti, não arrastou a Terra para o Sol?
— Qual, doutor, o sr. estava dormindo e parece que foi pisado pela "pisadeira".
— Pela "pisadeira"? que vem a ser esse bicho, coronel?
— Eu lhe conto, replicou o meu interlocutor, e referiu-me uma curiosa lenda de senzala, que o leitor lerá no seguinte artigo.

 

Abusões roceiras
I


O coronel Juvêncio Amaro da Fonseca, ou simplesmente, o coronel Amaro, era uma figura "essencialmente agrícola".

Largo carão vermelho como miolo de melancia madura; cabelo alourado, rebelde e grosso como as bonecas do milho antes de maturescência, nariz amplo, grosseiro, térreo, informe como uma raiz de mandioca; dentes enormes, destacados, semelhando moirões de cercas da roça; pescoço de touro, olhos perdizes, de cavalo esperto ,e velhaco.

Calçava botas de couro de veado e vestia paletó e calças de algodão paulista azul.

A camisa, francamente desabotoada, deixava à mostra o largo peito hirsuto, forrado de cerdas ásperas e longas.
Ostentava uma saúde exuberante de terras estrumadas, e porejava-lhe de toda a figura a seiva de um sangue rico alimentado a entrecostos e a inhames.

Trazia na roupa todas as nuanças das cores agrícolas; o carvão das queimadas, a lama dos brejos atravessados; parecia que se revolvera nas varreduras do terreiro, nos bagaços da cana, no chão dos currais.

Tresandava a cheiros indefiníveis e era loquacíssimo, inteligente e bom, dessa bondade que deflui da máxima — "a caridade bem entendida começa por casa".

Por isso trazia sempre consigo farta provisão de idéias lúcidas e de matulotagem; aquelas na ponta da língua, prontas para a primeira palestra adventícia; esta num pequeno saco de viagem, reservada para as solicitações do estômago insaciável.

O coronel Amaro contou-me que a "pisadeira" é uma espécie de sapo que vive oculto nos buracos das senzalas, donde sai, alta noite, a perturbar o sono dos pretos que dormem ressupinos nas tarimbas. Em vendo-os bem adormecidos vem a "pisadeira" e senta-se-lhes sobre a "boca do estômago", dando-lhes maus sonhos, povoados de fantasmas medonhos, de almas e assombrações. Eles logo despertam, mas não podem gritar; vêem, ouvem, mas não podem mover-se, acabrunhados como estão sob a pressão da "pisadeira".

Quem quiser evitar o malefício do duende precisa, ao deitar-se, rezar três vezes o padre-nosso-pequenino, cuja fórmula é a seguinte:
"Padre-nosso pequenino, me guiai por bom caminho, Santo Antonio e meu padrinho que me pôs a cruz na testa. Sete anjos me acompanhem, sete tochas me alumiem, pisadeira não me pise, nem de noite, nem de dia, nem em hora nenhuma".

Feito isto, o sujeito benze-se nove vezes e pode depois dormir tranqüilo a sono solto.

O coronel.Amaro era uma farmacologia ambulante; conhecia receitas para curar todos os males que afligem os bichos domésticos e os homens.

Contra a verruga do gado ensinava: "amarra-se o animal junto das goteiras do telhado, em dia de chuva, unta-se a verruga com um pedaço de toucinho, traçando três cruzes sobre ela; enterra-se depois a meizinha no chão onde caem as goteiras, e de costas voltadas para o animal doente, reza-se o Credo. Ao terminar a oração cai a verruga". Bem vêem que isto é mais simples do que uma cauterização.
 

II


0 meu jovial companheiro de viagem tinha nas rezas eficacíssimo recurso para tudo. Observando-lhe eu que era triste de ver-se, neste país de proverbial fertilidade, a estéril zona por onde rodávamos havia algumas horas, disse-me que já conheceu essas terras cobertas de florescentes algodoais; que, se aquela cultura agora aí de todo se extinguira, era isso devido ao "curuquerê", a praga de lagartas que em poucos dias arrasa as roças de algodão.

Não são os processos aperfeiçoados de cultura que nos faltam; falta-nos a fé em Deus. E disse que sabia uma oração infalível contra os curuquerês. Basta rezá-la simultaneamente em três cantos da roça, deixando desimpedido o 4.° por onde fogem as longas filas das lagartas, afugentadas pelo esconjuro.

Perguntei mais tarde a várias pessoas se reconheciam a eficácia da receita; todos afirmaram-na categoricamente; apenas, não me ensinavam a "reza", porque perderia a "virtude" se a dissessem fora das roças.

O coronel confiou-me ainda várias rezas para todos os efeitos e ocasiões. Ia a enveredar por uma Ave-Maria contra não sei que coisa, quando o apito da locomotiva nos anunciou a estação de Sorocaba.

Escrever a história antiga de Sorocaba seria traçar a crônica das vicissitudes por que tem passado o burro, desde os primordiais tempos daquela terra, até à revolução progressista do vapor, que levou por diante dos limpa-trilhos, atirando-a pela serra do Cubatão abaixo, a prosperidade sorocabana na figura das tropas espantadas e ao som de grande zurraria angustiosa.

No tempo das feiras, quanta vida ali! Pelas invernadas circunjacentes, 80.000 burros, representantes (como produtos) de uma florescentíssima indústria. Dentro da cidade, os muladeiros argentários, cruzando garbosamente as praças, montados nos seus altivos ginetes reluzentes de prataria. Sorocaba era uma cidade argentina. Á ourivesaria de prata chegara a uma perfeição e desenvolvimento extraordinários. O muladeiro trazia a tropa e voltava com os luxuosos adornos dos arreios sorocabanos.

Nos bairros, hoje soturnos e despovoados, pululava uma ruidosa multidão alegre e brilhante. Vinham mulheres de toda a parte que ai estabeleciam, pelo tempo da feira, a colônia vagabunda do amor venal. A cidade transformava-se durante meses num grande foco de esplendores e de prostituição.

Hoje (Sorocaba tem um aspecto decrépito que entristece. Imprevidente, não tratou de transformar as invernadas em lavouras, e quando o burro fugiu espavorido pelos bufos do cavalo de fogo, decaiu, porque a sua riqueza não tinha elementos de fixidez no solo.

Depois do burro, e só muito mais tarde, começou a cultivar o algodão, enquanto o preço deste produto era exorbitantemente remunerador; essa indústria hoje aí também está decadente.

Quem a degradou assim? Seriam os curuquerês do coronel Amaro? Não, mas a concorrência dos Estados Unidos, com os seus processos aperfeiçoados de cultura.

De Sorocaba gasta-se pouco à estação da Vileta, situada num planalto de campos de excelentes pastagens. Notei lotes de terreno enquadrados por valos; informaram-me que o sr. Mayrink, diretor da Companhia Sorocabana, vai tentar naqueles terrenos, que dizem ser fertilíssimos, a cultura do trigo.

Da Vileta à Estação do Ipanema, alguns minutos; aproveitei-os em protestar a mais cordial simpatia ao meu companheiro de viagem, o coronel Amaro, que seguia viagem para o sítio no município do Tietê.

 

No Araçoiaba
 

I


Assentam as edificações da Fábrica na vertente oriental da montanha Araçoiaba, à margem do riacho Ipanema, enfrentando •com um morro mais baixo, cintado à meia altura pela linha férrea Sorocabana, que aí tem a estação do Ipanema. , Remata este morro em uma esplanada de campos nativos e de cerrados, que se dilatam até para além da estação de Vileta, sendo grande parte destes terrenos compreendida pelo perímetro da Fábrica.

Vista da estação, a Fábrica apresenta o aspecto de uma vila, administrada por uma boa câmara municipal; pois há ordem nos arruamentos e bela arborização nas praças.
As casas de moradia dos empregados, de construção uniforme, alvejam na encosta da montanha, tendo por fundo de paisagem as verdes matas do Araçoiaba.

O rio Ipanema, represo, dilata-se em grande lago de margens sinuosas, com manchas, aqui e ali, à superfície d'água de nenúfares e d'outras plantas aquáticas.

A um lado, as casarias das oficinas, de fundição, de refino, de máquinas; a vasta galeria avarandada onde residem os operários, sombreando-a um belo renque de frondentes paineiras, que também vicejam nas outras ruas e praças, ao lado dos guapirubus e das palmeiras.

Tudo aquilo respira um ar de tranqüilidade, de ordem e de paz; parecendo mais uma estação termal desabitada, do que um estabelecimento do governo.

A horas de trabalho, ninguém se vê desocupado, cruzando as ruas, "sem ter que fazer". A atividade está toda concentrada nas oficinas, junto dos fornos, das forjas, das máquinas de trabalhar o ferro. A hora de começar ou largar o trabalho é marcada pelo apito de um vapor que move o martelo de bater o ferro refinado.

Tem-se na Fábrica todos os recursos e regalos de uma cidade: hotel, padaria, açougue, hospital, médico, farmácia, banda de música de operários. O comércio de gêneros alimentícios, frutas e outros artigos de consumo doméstico, é feito pelos caipiras das circunvizinhanças, que para aí convergem, aos domingos, com os seus cargueiros de provisões.

O corpo, vê-se, goza de todos os bens terrenos; quanto à -alma, o capelão do estabelecimento, reverendo padre Gottone, encaminha-a na direção do céu com uma missa diária, às 6 da manhã, perante um número de fiéis relativamente restrito, constando dele celebrante, do seu acólito e da imagem de S. João, o padroeiro da Fábrica.

No sr. padre Gottone contrastam singularmente a robustez moral com a fragilidade corpórea; não que s. revma. maltrate a jejuns e cilícios o terceiro inimigo da alma; antes, é a carne do vigário de Cristo que se mostra de uma rebeldia inexplicável contra os cuidados culinários de que é rodeada. Daí vem que o sr. capelão, possuindo um corpo alentado, julga-se débil, e, procedendo de acordo com as suas suspeitas, não raro ingere, à ceia, uma dúzia de ovos com algumas chávenas de chá e muita compunção.

No mais, um sacerdote às direitas, de moralidade intemerata, de profunda fé religiosa, assíduo aos ofícios, bom e carinhoso para as crianças, mui temente de que o pecado não venha a gafar as ovelhas confiadas à sua guarda.

Como administração oficial, a Fábrica do Ipanema é uma longa história engraçadíssima, que vem vindo desde meados do século.atrasado até agora cheia de episódios, de surpresas e de tolices administrativas singulares. Como riqueza, porém, a Fábrica é um Eldorado.

A Natureza foi assombrosamente pródiga naquele recanto de terra brasileira e as riquezas minerais do Araçoiaba realizam a fábula da perdiz que voava assada, já com o respectivo molho.


II


O minério do Ipanema é o mais rico do mundo; informam-me que contém 72% de ferro. Quanto à sua abundância, assim se exprime o coronel Frederico Guilherme de Varnhagen, que foi diretor daquele estabelecimento de 1815 a 1821, referindo-se ao grupo de montanhas de formação metalúrgica que a fábrica explora, ou melhor, devera explorar:

"Este grupo de montanhas tem cerca de 3 léguas de comprimento e proporcionada largura. O trecho do morro é de granito; e de Norte a Sul, isto é, no sentido longitudinal, é cortado por três grossos veeiros de ferro, já magnético, já especular (proximamente de 7 metros de pujança). Há porém aos lados e pelo cimo bancos de chistos de várias grés,, de pedra calcárea escura, de mármores, de azul da Prússia, de pederneira, de grustein e até de formações auríferas. O mineral "solto à superfície" do morro é tanto e tão rico, que creio dele se poderia por "mais de cem anos" alimentar a "maior fábrica do mundo", sem recorrer a trabalho algum de mineração".

Isto, se é muito como riqueza nacional, ainda inexplorada, importa, contudo, grande desencanto para o turista que visita a Fábrica.

Eu, como todos os visitantes, tive curiosidade de ver as minas; lá fui, e, em vez das grandes escavações que pensava encontrar, vi apenas o minério acumulado à flor da terra, consistindo todo o trabalho de mineração em carregar com êle as carroças de transporte.

Acima disse que a Natureza usou de assombrosa prodigalidade no Ipanema; de fato: não só se acumula aí o minério de ferro, mas tudo quanto pode facilitar a exploração dessas enormes riquezas: grandes jazidas de calcáreo (do qual possuo um fragmento, colhido atoa na pedreira: é um mármore lindíssimo, preto, listado de veias brancas, e por certo, em competência estrangeira, mui próprio para quaisquer trabalhos de marmoraria). Há ainda a grés refratária, para a construção dos fornos altos; o minério pobre, usado como fundente, etc. Tudo isso está quase à superfície do solo, no recanto da montanha conhecido com o nome de Capuava. Para carrear esses materiais, fácil trabalho: descem eles como que naturalmente pelo morro abaixo até ás bocas dos fornos-altos, que os absorvem e digerem no seu ventre de fogo, vomitando-os depois, em ondas de ferro líquido, sobre as formas modeladas no chão em que assentam aqueles fornos, no interior da oficina de fundição.

Este primeiro trabalho produz a guza, que, ou é vendida nesse esta.do, ou passa para o forno de refino, na oficina contígua, sendo depois batida por um grande martelo movido a água e outro a vapor, transformando-se em barras de ferro refinado.

Confio da perspicácia do leitor que estará vendo claro na arte metalúrgica, depois dessas explicações tão lúcidas; se assim, porém, não é, passemos adiante, a informações mais compreensíveis.

Fora o martelo a vapor para bater o ferro refinado, todos os demais maquinismos da Fábrica são movidos pelas águas do rio Ipanema, que, represado à altura conveniente, fornece uma poderosa força motriz gratuita, força que pode ser utilizada para mover outros maquinismos que se estabeleçam além dos já existentes, prestando-se a isso a declividade do terreno.

Desde já trata-se de dar um maior desenvolvimento à Fábrica, elevando assim a produção atual que é de 3.000 kil. por dia, a 32.000 kil., sendo 12 de ferro batido e aço. Tal é o programa do governo desde o ministério Sinimbu.

O ferro do Ipanema, confrontado com o melhor dos Estados Unidos, leva vantagem sobre este. Na Exposição Industrial realizada o ano passado no Rio de Janeiro, estiveram expostas rodas de. um e outro ferro, que havia servido nos vagões da Estrada D. Pedro II; a experiência provou a superioridade das rodas de ferro fundido resfriadas na Fábrica do Ipanema. A companhia Carris Urbanos de S. Paulo já começou também a adotá-las.

A excelência do ferro do Ipanema resulta não só da qualidade do minério, como do emprego do carvão vegetal na fundição. O combustível é fornecido pelas matas da Fábrica, cuja área florestal abrange atualmente duas léguas quadradas. Sobre esta superfície está espalhada uma população de 500 a 600 almas, compreendendo, além do pessoal das oficinas, os carvoeiros, os caieiros, que vivem nas matas, onde se ocupam na fabricação de cal e do carvão.

Grande número de operários é de antigos escravos da nação, libertos pela lei de 28 de Setembro; alguns deles, nascidos e educados na Fábrica, hoje ganham 6$000 diários como mestres de oficina.


A Fábrica de Ferro
 

I


A verdadeira existência da Fábrica de Ferro do Ipanema deve contar-se de 1816 para cá, quando foi nomeado diretor do estabelecimento o coronel Frederico Guilherme de Varnhagen.

Em breves traços, eis o que se passou até esse tempo:

Em 1589, o paulista Afonso Sardinha, andando a bater matos à procura de ouro, fora ter ao morro do Araçoiaba, onde lhe constara haver jazidas auríferas. Em vez de encontrar um filete de ouro, Sardinha descobriu uma montanha de ferro, pródiga do minério mais rico e mais puro que possa haver.

Sardinha contentou-se com o gato, visto não ter apanhado a lebre, e construiu um forno catalão para preparar o ferro. Essa indústria estava na sua idade de pedra; Sardinha, acabrunhado de dificuldades, abandonou os trabalhos que iniciara.

Divergentes das informações de Azevedo Marques, tenho as seguintes: Cerca do ano de 1600 um indivíduo tornou a encontrar as jazidas de ferro do Araçoiaba, já então abandonadas e esquecidas. A descoberta transpirou, chegando aos ouvidos do ouvidor da comarca de Itanhaém, a qual abrangia dentro do seu perímetro as minas em questão. Este ouvidor, cujo nome não lembra, veio pessoalmente verificar a existência das jazidas metaliferas, achou-as de agrado, e para dar um ar de sua graça, publicou alvará proibindo, sob pena de morte, que alguém se estabelecesse nas terras do Araçoiaba, mandando, concomitantemente,  "levantar um pelourinho".

Eram uns magníficos homens os ouvidores; este sobretudo, previdente, sabendo que a fundição do ferro necessitava de carvão vegetal, queria poupar as matas que haviam de, no futuro, fornecer o indispensável combustível.

Nesta segunda fase a Fábrica nenhum desenvolvimento teve e foi de novo abandonada.

Em 1808, o Conde de Linhares, ministro de D. João VI, tendo em vista libertar o país da dependência em que se achava perante a indústria estrangeira, mandou fundar duas fábricas de ferro, uma em Minas Gerais, outra nesta província, no Ipanema.

Para este fim veio da Europa o coronel Frederico Guilherme de Varnhagen, que servia no exército português com o posto de capitão. O velho conselheiro Martim Francisco, então inspetor das minas e bosques, foi encarregado de demarcar a área florestal precisa para os trabalhos da mineração, e de fazer outros necessários estudos. Inaugurou-se de novo a Fábrica, constituída por empresa entre particulares e o príncipe D. João, dirigida por uma junta diretora da qual fazia também parte Varnhagen, como representante dos acionistas particulares. Dirigia o serviço, como técnico, o sueco Hadberg. Demarcou-se o distrito florestal, compreendendo 3741 hectares de matas, e mandou-se pagar as benfeitorias aos intrusos que, apesar do pelourinho do ouvidor de Itanhaém, tinham-se estabelecido no morro Araçoiaba, lavrando as terras.

Essas benfeitorias importam em 826$360. Hadberg com a sua colônia de operários estabeleceu as forjas suecas para o "tratamento direto" do ferro, sistema precário que só preparava o metal para a fabricação de pequenos instrumentos de lavoura, mas imprestável para a fundição de peças que exigissem grande resistência.

Por esse tempo veio ao Brasil o Barão Eschwege, diretor geral das minas de Brunswick, honrem mui proficiente em metalurgia, o qual escreveu posteriormente, lêmo-lo em Larousse, muitas obras sobre o reino mineral do Brasil. Conversando Eschwege com Varnhagen, combinaram, à vista da imperfeição do sistema de mineração usado pelos suecos, que indispensável era adotar-se sistema mais aperfeiçoado. O rei D. João VI mandou rescindir o contrato com o sueco Hadberg, chamou a si toda a fábrica e nomeou seu diretor a Varnhagen em 1816. Varnhagen constituiu os fornos altos (que hoje ainda funcionam) e pela primeira vez no Ipanema correu o ferro fundido, modelando-se com êle, no dia 1.° de novembro de 1818, três grandes cruzes, uma das qu|ais vê-se ainda erecta à entrada do estabelecimento, no terrapleno que forma a represa do riacho Ipanema, e cujas águas são, como já dissemos, a força motriz dos maquinismos da fábrica.

Para recompensar estes serviços, o rei elevou Varnhagen ao posto de coronel e deu-lhe a Comenda de Cristo.


II


Varnhagen reconheceu desde logo a insuficiência da área florestal demarcada pelo coronel Martim Francisco, em 1810, e mandou demarcar nova área em 1820.

Sobreveio então a crise política, depois o juramento da Constituição, criando-se os Conselhos Administrativos.

O Conselho ordena que Varnhagen jure a Constituição; replica este que não é português, mas alemão. Insiste o Conselho, mandando que Varnhagen ao menos faça jurar a dita Constituição pelos empregados da Fábrica; responde este que comunicara aos seus subordinados a ordem do Conselho. Disto proveio algum azedume de parte a parte e o coronel Varnhagen pediu demissão do cargo de diretor da Fábrica, à qual tantos serviços prestara, pretextanto ter necessidade de voltar à Europa para educar seus filhos.

O Conselho Administrativo pediu então a Varnhagen que, visto retirar-se, indicasse um oficial hábil para o substituir na direção do estabelecimento; Varnhagen indicou dois.

Que fez o Conselho?
— Nomeou um terceiro!

Retirou-se Varnhagen para a Europa, levando em sua companhia seu filho o jovem Francisco Adolfo de Varnhagen, o ilustre brasileiro que depois se chamou o Visconde de Porto Seguro, com o qual teremos de nos ocupar mais tarde.

Pela retirada de Varnhagen deixou de realizar-se a aquisição da área que só mais tarde, sob a atual administração do sr. dr. Mursa, foi adquirida, quando já a proximidade da ferrovia Sorocabana muito elevara o valor venal daquelas terras, que, oportunamente compradas, teriam custado ao governo soma insignificante.

A Fábrica estava progressiva e rapidamente decaindo, pela incapacidade dos seus diretores, de modo que em 1834, sendo presidente desta província o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, foi nomeado diretor daquele estabelecimento o alemão Major Bloem, que no Pará prestara serviços à Independência, tendo anteriormente sentado praça no exército brasileiro.

Bloém trouxe da Europa uma colônia alemã que prestou serviços à Fábrica, até que em 1842, quando ela parecia dever entrar em nova era de prosperidade, uma nova crise política veio de novo paralisá-la. O Major Bloem, envolvido na luta civil, foi preso por ordem do ulteriormente Marquês de Caxias. Caiu de novo a Fábrica em abandono.

Em 1860 foi dissolvida, ordenando o governo que, em vez dela se fundasse uma outra na província de Mato Grosso. Para lá foram remetidos o pessoal técnico e os oficiais de ofício, escravos da nação, ficando no Ipanema alguns velhos e inválidos, indo o resto para a colônia do Itapura.

Este caso da peregrinação a Mato Grosso é de grande pilhéria. Para lá seguiu tudo, pessoal e maquinismos, ao mando de um ilustre desconhecido — o engenheiro alemão Rodolfo, que tempos antes havia sido contratado na Europa para vir dirigir" o laboratório pirotécnico do Rio de Janeiro, direção na qual revelou extraordinária incapacidade,.

Ora, para recompensar o fiasco deste inhábil fogueteiro, foi que o governo lhe confiou o encargo de fundar em Mato Grosso uma fábrica de pólvora e outra de ferro; quando ninguém dava notícia de haver naquela província minério de qualidade alguma.

Depois de cinco anos de infrutíferas pesquisas, o grande metalurgista voltou ao Rio, sem haver descoberto ou fundado coisa alguma; tendo ganho 10.000$000 anuais de ordenado, fora uma diária de 10$000para cavalgadura.

Ora, se um burro ganhava aquela soma, quanto deveriam ganhar os inventores e acoroçoadores dessa excursão de tão grande pilhéria?

O transporte dos materiais, do Ipanema a Mato Grosso, custou 22.000$000; parte deles ficou em caminho, e alguns até hoje enferrujam-se ao sol, atirados sobre a praia da cidade de Santos, perto da Alfândega.

Esteve a fábrica em abandono até 1865, ano em que lhe foi nomeado diretor na pessoa do major de engenheiros, dr. Joaquim de Sousa Mursa, a cuja inteligente direção' deve-se a prosperidade relativa em que se acha hoje aquele estabelecimento. 1882.


Quadros a Lápis


Quem tem saúde, dinheiro e curiosidade visita a França, a Alemanha, um pouco a Inglaterra, faz uma ascensão à Suíça e vai descansar algum tempo em Itália.

É tão bom, na volta, ter qualquer coisa a contar do que se viu na viagem; — os ruidosos "boulevards" parisienses; as margens pitorescas do Danúbio; os Alpes suíços com os seus "chalets" destacando na encosta das montanhas nevadas; a opulência londrina; Roma com os seus monumentos históricos, as ruínas dos seus palácios de mármore; e as suas campanhas que a nossa fantasia se compraz em povoar com a graça bucólica da poesia virgiliana... é tão bom podermos dizer: — em tal dia vi Gambetta, ou lord Fulano; — em tal noite contemplei o vulto imponente da catedral de S. Pedro... oh! que belo luar fazia!

Depois, em Veneza... quão doce é cismar ao balanço da gôndola, ouvir a dolente ária que uma condessa romanesca, ali no palácio vizinho, canta com a morbideza característica da italiana... e, eis porque, quando se tem dinheiro e saúde, a gente vai correr terras estrangeiras, para poder, na volta, contar aos que ficaram na pátria: — estive em Paris, em Londres, em Roma...

Eu estive apenas rio Ipanema, mas cismei longas horas no meio dos matos, no coração do Araçoiaba; contemplei o zimbório verdejante da floresta; ouvi cantar a araponga, na doce hora do entardecer; senti-me remoçar na solidão da Natureza.

A minha gôndola era a canoa caipira, e o lago aí estava espraiando-se dormente pelas fraldas da montanha, com as suas rasas ilhotas florescidas, batido em cheio, pelo claro luar destas tão belas noites de verão.

Muitos dos que me lêem agora já estiveram por certo nesses lugares, e acham, porventura, que sou mais um paisagista do que um narrador, que me demoro em pintar uma aquarela, quando apenas devia descrever o quadro a traços de desenhos geométricos. Mas, é que eu trouxe um lápis de turista e não o tiralinhas do agrimensor.

A poesia da natureza, a emoção do que esta em nós produz, é toda relativa à impressionabilidade da alma humana; o contemplativo comove-se perante o mesmo quadro incapaz de impressionar, de leve sequer, o espírito prático do frio observador; nisto está a divergência entre um poeta e um engenheiro. A uns, portanto, o marulho dos córregos, o misterioso rumor das árvores, o céu estrelado e a terra solitária; a outros, o barulho da água nas rodas hidráulicas, e o silêncio amigo das equações do 2.° grau, com todos os seus expoentes e coeficientes.

Ignoro quantas toneladas de combustível podem produzir as matas do Araçoiaba; mas sei que as árvores são frondentes, que os pássaros cantam na espessura da folhagem, que as águas correm marulhosas sobre um leito de pedras, orlado de musgos, onde vêm banhar-se as libélulas nas horas quentes do dia.

Uma excursão à montanha do Araçoiaba é cheia de atrativos. Sobe-se por uma estrada de ferro em miniatura; o comboio compõe-se de um carrinho aberto, podendo acomodar seis pessoas inclusive o sr. Cruz, "chefe do tráfego", que arranja a manivela do breque; as rodas do carro, de dois palmos de diâmetro, resvalam sobre trilhos, de 62 centímetros de bitola.

Estendem-se estes, num percurso de 4 e meio quilômetros, desde junto dos fornos altos até a Capuara, servindo para transportar o minério depois de reduzido.

Todo o visitante do Ipanema faz, necessariamente, uma. excursão no "trenzinho", e a viagem não deixa de ter grande encanto.
Ao partir da Fábrica sobe-se por uma rampa de 12% de inclinação, e a esta primeira rampa sucedem-se outras, intercaladas de planos horizontais, até à Capuara, sendo os declives e os planos combinados de forma que o trem roda por seu próprio impulso, do extremo superior da linha até os fornos altos, onde os trilhos acabam por uma contra-rampa.

Para a tração, dois animais atrelados fazem o efeito de locomotiva. Quando o vapor diminui de força, isto é, quando afrouxam os músculos da parelha, o sr. Cruz, chefe do tráfego, com um enérgico — Eh! mula! — dá vigoroso e novo impulso à marcha.

Esta ascensão desmente o verso do poeta:

"Olá, Veloso amigo, aquele outeiro,
É melhor de descer que de subir".

Aqui dá-se o contrário: subir é muito melhor, para o passageiro, está visto; não há os sustos e as comoções nervosas da descida; vai-se devagar, em toda a tranqüilidade dos nervos.

A descida, porém, principalmente na última rampa, faz arrepiar as carnes aos que não estão acostumados àquela ginástica. O carrinho, rodando pelos planos inclinados se o deixassem adquirir grande velocidade, dificilmente o fariam parar na corrida. 12% de inclinação, sobre trilhos, já é quase um precipício; o sr. Cruz, porém, chama àquilo de suave ladeira.

A cada grito do passageiro amedrontado, responde êle invariavelmente: "não precisa ter medo"! Esta é a fórmula de que usa em todas as ocasiões, qualquer que seja o gênero e a eminência do perigo.

Cerca de um quilômetro da partida, entram os trilhos pela mata virgem, tornando-se então do maior encanto este passeio.

A meio caminho e à esquerda está a picada que vai ter a uma anfractuosidade da montanha onde foi erigido o "monumento'' à memória de Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto' Seguro.


O Monumento de Varnhagen

I


Agora que chego ao sopé do Monumento de Varnhagen, assoberba-me a emoção. Sinto a palavra por demais pálida para reproduzi-lo em toda sua imponente grandeza.

Os fortes abalos do sentimento estético são inenarráveis.

O Monumento de Varnhagen é ao mesmo tempo grandioso e mesquinho: — Numa erma clareira do Araçoiaba, sobre modesta pilastra de pedra grosseira, ergue-se a pequena cruz tosca de ferro, levantada à memória do que morreu longe da pátria, ausente dela durante quase toda a vida, mas "estremecendo-a" desde criança, honrando-a com seu trabalho e com sua inteligência; e, até a hora derradeira, lembrando-se desse recanto do mundo onde nascera, para pedir que aí perpetuasse o testemunho do seu patriotismo numa legenda que deixou ao morrer.

A cruz é um símbolo sempre triste; mas ali, na soledade da floresta virgem, o merencóreo vulto da Cruz de Varnhagen, com os braços estendidos na direção Norte-Sul, enfrentando com o sol que além surge por detrás da serra, destaca-se como uma nota de indefinível tristeza no fundo azul do céu iluminado e glorioso!

Na face da pilastra, fronteira ao Levante, num escudo de ferro fundido, lê-se a inscrição que Varnhagen deixara em seu testamento; é o adeus nostálgico daquele grande espírito êxul na terra estrangeira:

 



À MEMÓRIA
DE VARNHAGEN, VISCONDE DE
PORTO SEGURO,
 NASCIDO NA TERRA FECUNDA DESCOBERTA
POR COLOMBO.
INICIADO POR SEU PAI NAS COISAS
GRANDES E ÚTEIS, AMOU SUA PÁTRIA
E ESCREVEU-LHE A HISTÓRIA.
SUA ALMA IMORTAL REÚNE AQUI TODAS
AS SUAS RECORDAÇÕES


Há alguma coisa de épico nesta legenda que o sol, de hoje em diante, pelo decorrer dos tempos, iluminará todas as manhãs com seus primeiros raios nascentes.

Como dissemos, no monumento de Varnhagen contrasta a mesquinhez da matéria com a grandeza moral da idéia.
O pensamento aí simbolizado é o patriotismo do autor da "História Geral do Brasil", que, 'tendo sempre vivido longe da terra natal, trabalhando por honrá-la no estrangeiro, não queria que suspeitassem que a olvidava.

Esta era a preocupação constante do seu espírito, mais de uma vez manifestada.

Em 1873, sendo então representante do Brasil na Áustria, e presidente da comissão brasileira na exposição efetuada esse ano em Viena, o Visconde de Porto Seguro, conversando com seu amigo o sr. dr. Mursa, diretor da Fábrica do Ipanema, disse-lhe: "Se eu morrer longe do Brasil, onde quer que seja, não quero sobre minha sepultura nem uma lápide; mas peço que no Ipanema, onde nasci, onde meu pai trabalhou, plantem num recanto solitário da mata uma cruz tosca de ferro fundido da Fábrica, com a inscrição que deixarei em testamento, para que a. todo tempo conste que, mesmo ausente da pátria, nunca a esqueci".

Este desejo Varnhagen manifestou-o ainda, quando em sua última viagem ao Brasil visitou o Ipanema a 28 de julho de 1877, um ano antes de morrer. Passeando então com o sr. dr. Mursa pelas matas, do Araçoiaba, indicou o lugar onde queria que se erguesse uma cruz à sua memória, e nesse lugar está hoje o monumento.

Do termo inaugural, colocado dentro de uma caixa de ferro na base do alicerce, consta que "tanto na escolha do local como na simplicidade do monumento guardaram-se as expressas recomendações do Visconde de Porto Seguro, deixadas em testamento". Aquele documento está publicado no número 7.837 do "Correio Paulistano".


II


Varnhagen. que tinha firmados direitos à gratidão da pátria, queria apenas aquela modesta recompensa — perpetuar seu nome no canto de terra onde brincou infante. Seriam sugestões da vaidade ou a nobre solicitação de su'alma brasileira, que, depois de enobrecida lá fora nos países estranhos, queria reverter para o primeiro lar, donde sairá infante e obscuro?

Para recomendá-lo à posteridade êle tinha o monumento das suas obras; o desejo, portanto, de ter aquela cruz de ferro votada à sua memória, no Ipanema, era mais do que amor à terra da pátria, era a saudade do torrão natal, onde primeiro sentiu-se viver.

Em todas as suas obras Varnhagen, depois do título — Visconde de Porto Seguro, escreve sempre: — (Natural de Sorocaba).

Êle  foi modesto; pedia aos seus amigos — uma cruz tosca de ferro — e a Natureza deu-lhe, numa garganta da montanha Araçoiaba, o mais belo e o mais gigantesco dos pedestais, — dois enormes blocos de grés sobrepostos um ao outro, de forma tal que mais parece havê-los ali colocado uma vontade poderosa, do que a ação das forças naturais inconscientes.

Chega-se ao Monumento por uma larga picada aberta na mata, subindo em ladeira por entre belíssimas árvores que, entrecruzando a ramaria, formam um toldo de verdura através do qual raro passa uma beta de luz do sol, de modo que o caminho fica assombrado por uma doce penumbra, mesmo alto dia, como se fora já a hora do crepúsculo.

Esta sombra e esse silêncio levam o espírito a íntimas meditações ; vai a alma triste; mas ao chegar à clareira onde campeia a Cruz de Varnhagen, rasga-se de repente o céu e senti-mo-nos tomados de um grande deslumbramento.

A entrada da clareira duas grandes pedras, a um e outro lado da picada, formam o digno prático desse templo da saudade, erguido em meio da solidão, à memória do historiador brasileiro.

Adiantando-se por aquela angústia, penetra o visitante numa % esplanada, a 800 metros de altura sobre o nível da Fábrica.

Aí está o Monumento de Porto Seguro, que consta, como já dissemos, de uma pilastra de pedra encimada por uma cruz de ferro, assentando sobre dois gigantescos blocos de grés.

O monumento, — materiais e mão de obra, — custou apenas 300$000; entretanto aquilo é a coisa mais grandiosa que talvez haja em toda a província de S. Paulo.

O sr. conselheiro João Alfredo quando em sua recente viagem ao Ipanema visitou aquele sitio, disse: — Se por entre estas pedras se despenhasse uma cascata, este seria um dos lugares mais belos do Brasil!

Do alto do bloco superior, ao qual sobe-se por largos degraus talhados na rocha, domina-se um soberbo panorama. A vista abrange num raio de 30 ou 40 léguas o semicírculo do fronteiro horizonte visual: dali se avistam as cidades de Itu e Sorocaba, D grupo de casas da Estação de Vilela, algumas fazendas espalhadas no vale, e lá em baixo a Fábrica de Ferro, à beira do lago.

E todos os dias o sol que nasce em frente bate naquela cruz e naquela rocha — no coração imorredoiro onde veio aninhar-se a alma de Varnhagem...

"Sua alma imortal reúne aqui todas as suas recordações".

 

O Visconde de Porto Seguro
I


Leitor, pela primeira vez te apostrofo e pela penúltima te amofino com o título e o assunto destes artigos.

Se neles me demoro mais do que tua paciência quer, é que me agrada trazer a memória em demoradas digressões por estes lugares, onde me ficaram muitas saudades da convivência de amigos e da beleza dos sítios alpestres, que me são hoje doce reminiscência.

Vieste subindo comigo, bom ou mau grado teu, até o Calvário, que, para este caso, é o Monumento de Varnhagen; dele te falei com afeto, porque realmente é belo, e, mais ainda, beleza brasileira.

Procuro dar-te um quadro de paisagem paulista; dás-me em troca, talvez, dois bocejos, sendo assim está recompensada minha boa vontade.
Sabes quem é Arabi? como êle nasceu, viveu, insurgiu-se, batalhou, foi vencido, processado e vai ser exilado? Por certo. Mas o Visconde de Porto Seguro, conheces-lo?

Este lado simpático do seu patriotismo já to denunciamos: orgulhava-se de ter aqui nascido; e, morrendo no meio dos esplendores da corte de Viena, êle que fez uma longa carreira brilhante pelo mundo, "reuniu todas as suas recordações" esparsas e veio enfim repousar na solidão da montanha sorocabana, onde pediu que lhe erguessem uma cruz de ferro.

Que fêz para justificar esse desejo? Procurou e conseguiu tornar-se meritório: escreveu a "História Geral do Brasil", a para isso exilou-se voluntariamente, andando a peregrinar pelos países, onde havia espalhada a maior parte dos documentos da história brasileira.

Isto já era bastante, mas não foi tudo que fêz o Visconde de Porto Seguro para merecer o direito de pagar à sua custa uma cruz de ferro erguida sobre um penedo, no meio do mato.

A traços largos, eis o perfil do historiador brasileiro:

Nascido no Ipanema a 17 de fevereiro de 1819, seguiu ainda criança para Europa, em companhia de seu pai, quando foi este demitido de diretor da Fábrica.

Cursou as aulas da Escola Politécnica de Lisboa, distínguindo-se pela sua grande aplicação e precoce talento. Concluído o curso, entrou para o exército português, conseguindo o posto de 2.° tenente de engenheiros. Sendo seu pai o .Coronel Frederico Guilherme amigo de D. João VI, opunha-se a que Varnhagen se declarasse cidadão brasileiro. Esta vontade foi respeitada enquanto viveu seu pai; morto este, o joven Varnhagen reclamou seus direitos de filho do Brasil, sendo então admitido no exército brasileiro com o mesmo posto que tinha no português.

Serviu desde logo como adido de legação em vários países, procurando por esse meio a oportunidade de estudar documentos da história pátria que- jaziam desconhecidos nos arquivos desses países, e reunindo materiais para a sua grande obra da História do Brasil.

Por ocasião da organização do corpo diplomático, feita pelo Visconde de Uruguai, Varnhagen, que já era Capitão de Engenheiros, deixou o serviço do exército, dedicando-se definitivamente à carreira diplomática, movido por aquele patriótico fim a que já aludimos.

Serviu em quase toda a América do Pacífico, e na Europa, que o saibamos, em Espanha, Holanda e Viena.

No Chile casou-se com uma senhora de rara distinção, dona Carmen, hoje viscondessa de Porto Seguro.

Sempre ocupado no estudo da história pátria, percorria as bibliotecas e os arquivos estrangeiros, e sempre que podia adquirir um documento histórico precioso, o fazia mesmo com sacrifícios pecuniários. Assim quando esteve no Peru, comprou a preciosa "Arte de la lengoa guarany" do padre Montoya, e publicou-a à sua custa, em 1876.

Inocêncio da Silva, no seu "Dicionário Bibliográfico Português", enumera, em um catálogo que confessa mui deficiente, 16 obras de Varnhagen, já originais, já de autor estranho, mas comentadas e esclarecidas pelo escritor brasileiro.

Essa enumeração omite outras obras publicadas posteriormente à data em que escreveu o bibliográfo português: uma que possuímos "L'origine Tourainienne des americains Tupis Caraibes et des anciens egyptiens" (Viena 1876), aí não vem .mencionada, bem como vários opúsculos.


II


Além das obras publicadas em. volume, Varnhagen deixou inúmeros artigos nos jornais científicos e literários do seu tempo. Foi talvez o mais assíduo colaborador da Revista do Instituto Histórico, tendo sido presidente honorário desta sociedade.

Em. Viena, conta-nos um amigo do finado, Varnhagen tinha no palacete que habitava uma vasta sala de biblioteca, com várias mesas de trabalho, em cada uma das quais estavam dispostos e ordenados os materiais históricos para as obras em que simultaneamente trabalhava. Além da "História da Independência", que deixou quasi ultimada, preparava uma nova edição da "História do Brasil".

A "Gazeta de Notícias", em uma série de artigos recentemente publicada a propósito da inauguração do "Monumento", dá copiosa relação dos subsídios com que concorreu o Visconde de Porto Seguro para a História do Brasil. Entretanto, na balança em que aquele escritor (sob cuja erudita crítica julgamos reconhecer o ilustrado sr. Capistrano de Abreu), coloca os feitos de Varnhagen, há tanto de bem e tanto de mal dito, que-não sabemos qual mais pesa, se o louvor ou o vitupério.

Sem podermos entrar na indagação dos defeitos e dos méritos atribuídos à obra histórica de Varnhagen, se não opondo à opinião do crítico do jornal fluminense outras de não somenos valia, uma insinuação quiséramos recusar, que vem mais a propósito do assunto que nos ocupa, — uma referência ao "monumento".

Insinua o escritor citado que o Visconde de Porto Seguro ordena em testamento "que seja erigido um monumento à sua memória" e mais adiante, falando da "História Geral", diz que "será daqui a séculos consultada como dicionário de arcaísmos-1' ; mas que Varnhagen assim não pensava, tanto que "a cada instante tomava umas certas atitudes estudadas com vista aos pósteros, lembrando, aqui uma estátua, além uma capelinha etc."

Procuramos ler o testamento do Visconde de Porto Seguro a ver em que termos êle "ordenava um monumento à sua memória", para concluir se ordem havia ou se modesto desejo de ter uma cruz funerária alí perto do lugar em que teve o berço, conforme de viva voz por vezes dissera a amigos ; não pude ver a disposição testamentaria, mas estou antes pelo desejo do brasileiro saudoso do que pela vaidade do historiador.
Outra insinuação do ilustrado escritor da folha fluminense é a que põe em dúvida a probidade literária de Varnhagen, nestes têrmos:

"Há um livro entre nós publicado sobre o distrito diamantino. ..
... Neste livro reclama-se para Ferreira Câmara, e nega-se documentalmente a Frederico de Varnhagen, pai do historiador, a prioridade na fundição em grande de ferro. Pois Varnhagen finge que não conhece este livro... Enfim, é possível que Varnhagen não conhecesse o livro; mas é tão difícil..."

Supomos ser o livro aludido as — "Memórias do. Distrito Diamantino", de Felício dos Santos; procuramo-lo aqui nas livrarias e em algumas bibliotecas particulares, não o encontrando: de modo que estamos por agora inibidos de ter maiores esclarecimentos sobre esse ponto controverso da nossa história industrial.

Varnhagen, à pág. 1166 a 67 — da "História Geral", alude, também com documentos, à tentativa de fundição do ferro em fornos altos, feita pelo desembargador Câmara no morro do Pilar, em Minas. Esta tentativa malograda, creio ser a mesma a que igualmente alude o escritor da "Gazeta de Notícias", e. se valiosas também são as autoridades que Varnhagen cita, parece que com razão podia êle atribuir a seu pai a prioridade da fundição do ferro em grande, sem fingir ignorar documentos em contrário.

Esta questão, tenho em peito oportunamente averiguá-la, ao menos para que a admiração que sinto pelo historiador brasileiro não seja diminuída com o meu receio de o objeto dela ser um homem Ímprobo.

E mais me custa a aceitar a insinuação quando confesso para pôr em relevo a retidão escrupulosa do espírito de Varnhagen o seguinte fato:
Apadrinhando êle a idéia da fundação de uma nova capital do Império em um ponto do interior; tendo muito o assunto e até indicado o lugar em que, a seu ver, devia ser fundada a futura capital; e, não querendo exclusivamente fiar-se nas indicações das cartas geográficas e em informações particulares, fêz uma longa e penosa viagem para conhecer "de visu" a região que indicava como própria para capital do Brasil: ora, proceder assim é ter consciência escrupulosa, incapaz de intencionalmente faltar à verdade histórica, nem mesmo solicitada pelo sentimento do amor filial.


Monumento ao Visconde de Porto Seguro
I


Inaugurou-se no dia 10 do corrente, na Fábrica de Ferro do Ipanema, o monumento elevado à memória do grande cidadão F. A. Varnhagen, Visconde de Porto Seguro.

Varnhagen, em disposição da última vontade, determinara a ereção desse singelo padrão de memória, na Fábrica de ferro do Ipanema, onde nasceu, quando era diretor daquele estabelecimento seu pai, o coronel Frederico Guilherme de Varnhagen, direção que exerceu desde o ano de 1815 até 1821, podendo ser considerado o verdadeiro fundador da Fábrica do Ipanema, pois sob sua administração executaram-se as primeiras reformas que constituíram a Fábrica na possibilidade de funcionar regularmente, merecendo entre elas especial referência a construção dos fornos altos.

Nascido na Fábrica do Ipanema, tendo aí passado parte da sua infância, o Visconde de Porto Seguro quis deixar perpetuado o seu nome nesse recanto da pátria onde viu a luz do dia, e ao qual alia nobres recordações à memória de seu pai.

Tanta importância atribuía o ilustre historiador brasileiro à ereção desse monumento, que a recomendara, como dissemos, em disposição de última vontade.

A sra. Viscondessa de Porto Seguro, viúva do finado Visconde do mesmo título, para dar cumprimento àquela vontade tantas vezes e tão solenemente manifestada, confiou a um amigo da família, o sr. comendador Fidelis Nepomuceno Prates, a missão de fazer levantar o monumento.

Era esta a última das cláusulas do testamento do Visconde de Porto Seguro, cujo cumprimento faltava para dar àquele instrumento inteira execução.

"A convite do sr. dr. Mursa, digno diretor da Fábrica do Ipanema, segue hoje para esse estabelecimento, com o fim de visitar o monumento, e sobre êle escrever circunstanciada notícia, o nosso colega de redação sr. dr. Ezequiel Freire.

Publicaremos, em tempo oportuno, as correspondências que a este respeito por êle nos forem enviadas.

Damos em seguida cópia da ata inaugural do monumento, e do termo colocado nos alicerces".


II

 (Cópia)


Termo de inauguração do monumento elevado à memória do Visconde de Porto Seguro, por ordem da exma. sra. Viscondessa de Porto Seguro, e em conformidade dos desejos do seu falecido esposo.

Aos dez dias do mês de novembro de mil oitocentos e oitenta e dois, achando-se presentes o sr. Comendador Fidelis Nepomuceno Prates, representante da exma. sra. Viscondessa de Porto Seguro, o Diretor e mais empregados desta fábrica e diversos cidadãos que assinam este; achando-se concluídas as obras do dito monumento, cuja pedra fundamental foi colocada no memorável dia Sete de Setembro, do corrente ano, foi este inaugurado pelo mesmo sr. Comendador Fidelis Nepomuceno Prates.

O dito monumento compõe-se de uma grande cruz de ferro fundido, presa a uma pilastra com três degraus, assentando sobre um penedo de grés, que no alto do morro Araçoiaba, fica saliente e olha para o oriente. Na frente da pilastra, acha-se um escudo de ferro fundido com a seguinte inscrição, deixada em seu testamento pelo mesmo Visconde de Porto Seguro: "À memória de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. Nascido na terra fecunda descoberta por Colombo. Iniciado por seu pai, nas coisas grandes e úteis. Estremeceu sua pátria e escreveu-lhe.a história. Sua alma imortal reúne aqui todas as suas recordações"'

Na face oposta da pilastra está gravado o seguinte: "Nasceu nesta fábrica, a 17 de fevereiro de 1816; faleceu a 29 de junho de 1878 em Viena d'Áustria, onde repousam seus restos mortais".

Na escolha do lugar e na simplicidade do monumento, guardaram-se as expressas recomendações do mesmo Visconde, deixadas em seu testamento, e no pedido que verbalmente fez ao diretor desta fábrica, quando a visitou pela última vez em 28 de junho de 1877.

Dentro de uma caixa colocada na base do alicerce foi encerrado um termo, assinado pelos empregados da administração da fábrica e' mestres .das diversas oficinas (cuja cópia se junta a este) bem como os objetos mencionados no mesmo termo.

Para constar, lavrou-se o presente termo que vai assinado pelas pessoas presentes.

S. João do Ipanema, 10 de novembro de 1882.

Fidelis Nepomuceno Prates; o diretor, Joaquim de Sousa Mursa; ajudante, Leandro Dupré ; Joaquim António Pinto Martins ; Felisberto N. Prates; almoxarife, M. Francisco da Graça Martins; escriturário, J. Dias da Costa; Alfredo Prates; desenhista,* Alfred Modrach; fiel do almoxarife, Luís Augusto Mascarenhas; Augusto Luís Pinto Martins; eng. de Minas de Freiberg, Alemanha, Otto Drude; capelão, Padre Alberto Francisco Gattone; médico, dr. Raimundo J. de Andrade; d. Laura Clementina de Sousa Mursa.


III


"Termo colocado na caixa encerrada no alicerce do monumento elevado à memória do Visconde de Porto Seguro".

Aos sete dias do mês de setembro, do ano de mil oitocentos e oitenta e dois, foi colocada esta caixa no alicerce deste monumento, elevado à memória do exmo. sr. Visconde de Porto Seguro, por ordem da exma. sra. Viscondessa de .Porto Seguro, em conformidade dos desejos de seu falecido esposo.

Para relembrar aos vindouros esta época, foram encerrados dentro da dita caixa, os seguintes objetos:

Uma breve notícia sobre o mesmo Visconde de Porto Seguro, cujo nome, por seus serviços e escritos, está ligado à história pátria.
Amostras dos produtos desta fábrica, onde nasceu o mesmo Visconde por cuja prosperidade sempre se empenhou.

Os números dos jornais seguintes publicados hoje a saber: "Correio Paulistano", "Província de S. Paulo" e "Ipiranga", todos da capital; e o "Diário de Sorocaba" da cidade do mesmo nome.

Elevando suas preces ao altíssimo, pelo repouso da alma do ilustre varão que esta memória recomenda à posteridade, os abaixo assinados, empregados da administração e mestres das oficinas deste estabelecimento, fazem também votos, pela prosperidade da indústria siderotécnica nacional, de que são hoje simples operários e a que está ligado, como fundador, o nome do pai do ilustre Visconde, o coronel Frederico Guilherme de Varnhagen.

Fábrica de Ferro de S. João do Ipanema, província de S. Paulo 7 de setembro de 1882, sexagésimo aniversário da Independência e do Império.

Joaquim de Sousa Mursa — diretor, Leandro Dupré — ajudante, José Dias da Costa — escriturário, Martim Francisco da Graça Martins — almoxarife, Florentino Neves de Araújo —  agente, dr. Raimundo José de Andrade — médico, Padre Alberto Gattone — capelão, Felipe Stoft — mestre da oficina de máquinas, André Aussenect — mestre do refino, Júlio César Tietê — mestre da fundição, João André Múller — mestre da carpintaria, Francisco Banch — mestre da. modelação, Jacob Barth — mestre de pedreiro, Cari von Merkatz — encarregado dos bosques, Alfredo Modrach — desenhista, Giovanni Rossini — empreiteiro.

Atesto que esta cópia está conforme o original.

Ipanema, 10 de novembro de 1882.

O Diretor


(a) Joaquim de Sousa Mursa.

 

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo- Volume LI - (1953) pag.178 a 209. Pesquisa de José Eduardo de Oliveira Bruno.

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