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"Um poeta morto"
JOSÉ EZEQUIEL FREIRE DE LIMA
Lembram-se
os leitores de Ezequiel Freire? Apesar do prolóquio da balada "Les morts
vont vite, estou certo de que não poucos se hão
de recordar ainda dêsse fúlgido espírito, dêsse belo coração, que tanto
amou e tão amado foi por todos os que o conheceram. Nas colunas do
"Correio Paulistano" cultivou êle, não raro, a prosa literária, com
o mesmo cuidado com que cultivava as flores do seu jardim; sua prosa tinha o
colorido destas, bem como o seu perfume, que era nêle a alma, a poesia, o
amor; o verso também, por vêzes, luziu aqui ainda que de relance quando a musa
pedestre descansava.
Não
é, porém, para escrever do seu valor literário e artistico que vou alinhando
estas regritas de prosa ligeira: o meu fim é outro.
Como
sabe, Ezequiel Freire, poucos dias antes de morrer, enviou a todos os seus
amigos um longo cartão, inteiramente negro, capeado em sobrecarta igualmente
lutuosa, no qual escreveu, a tinta branca, num belo cursivo:
Por
conta de maior quantia
Reze por êle
Padre Nosso e Ave Maria...
O
poeta, com efeito, que datou êsses cartões de 2 de novembro de 1901, faleceu
daí a 8 dias em Caçapava, onde se achava por motivo da mesma tenaz moléstia,
que o vitimou: Ezequiel Freire pressentiu o seu próximo fim; ao contrário dos
demais tuberculosos, que sempre se iludem com uma enganadora esperança.
Por
conta de maior quantia
Reze por êle
Padre Nosso e Ave Maria...
Quem
leu êsses dizeres, poucos dias antes da morte do poeta, mal podia imaginar que
êle pudesse falar tão a sério. De sorte que, excusado é dizer, todos os seus
amigos sentiram dolorosa surprêsa quando souberam que Ezequiel Freire havia
morrido numa cidade do interior, junto dos seus e, pode-se dizer, mais perto da
natureza, pela qual tinha uma paixão de panteísta. Dentre os que mais
surpresos ficaram com tão crudelíssima perda, foi o escritor destas linhas,
pois o poeta sempre o honrou com a sua camaradagem de irmão em letras, já no
trato gentil que, como homem, lhe dispensou, já no interêsse que a cada passo
manifestava quando escrevia sôbre a arte e artistas de São Paulo, pelas
reiteradas referências que lhe fazia.
Lembra-me
ainda que foi Ezequiel Freire quem mais me encorajou no início de minha
carreira literária. Eu trabalhava, por êsse tempo, na redação do "Diário
Mercantil", uma das mais belas fôlhas do Brasil, sob o ponto de vista do
seu savoir faire; e Ezequiel enviava à "Gazeta de Noticias" uma
correspondência hebdomadária, na qual dava conta de tudo, principalmente de
artes e letras. Numa dessas correspondências, o poeta anunciava, com palavras
de entusiástico louvor, um livros que eu devia publicar sob o título -
Acordes, ao mesmo tempo que transcrevia um soneto dessa coletânea, denominado -
Júlia.
Em
outras correspondências, Ezequiel sempre se referiu ainda à minha pessoas com
elogios de fraterna camaradagem; e, o que é mais, quando "A Semana",
revista de letras e artes de Valentim Magalhães, encetou a sua Galeria do
Elogio Mútuo, foi o poeta designado para ser o meu mutuante, o que o fêz
escrever um belo perfil meu, que ainda hoje leio e releio com lágrimas nos
olhos, tal a saudade que sinto dêsse generoso amigo das letras, que a ninguém
invejava e a todos queria bem como companheiro da mesma jornada.
Assim
sendo, apesar de ser o incréo que sempre me considerei, digo-lhes francamente,
amigos leitores: logo que recebi o cartão negro com aquêles singelos dizeres
de bom cristão, encerrei-me no gabinete de trabalho e, diante do seu livro
"Flores do Campo", rezei alguns Padres-Nossos e Ave-Marias, pensando
no poeta, que deveria morrer daí a 8 dias.
Por
conta de maior quantia
Reze por êle
Padre Nosso e Ave Maria...
E eu, que lhe era devedor de tantas gentilezas, porque não havia de orar por aquêle espírito imaculado, quem, na frase precisa de um escritor, amou religiosamente como ninguém a Flor, a Mulher e a Poesia?
Significativa trindade! Nas suas obras e nas suas ações, notei sempre que a extensão dêsse culto como o traço mais característico de sua personalidade artística.
Basta notar que foi uma poetisa, Narcisa Amália, quem o apresentou ao mundo das letras no excelente prefácio, que, antepôs ao volume das "Flores do Campo". Já dizia a elegante poetisa brasileira sôbre êsse livro: "Quem abre o livro, atraído pela singeleza do título, não sofre uma desilusão: há com efeito nas composições que o formam a graça nativa, o luxo de tintas e as emanações acres das flores indígenas".
Parece que ninguém melhor do que Narcisa Amália definiu a personalidade de Ezequiel Freire, já a êsse tempo, em que o autor apenas tartamudeava o verbo da poesia.
A poetisa das "Nebulosas" era uma entusiasta das qualidades poéticas do autor das "Flores do Campo".
"Ezequiel Freire, escrevia Narcisa Amália, é muito moço; vinte páginas do livro da existência tem voltado apenas; mas se tiver a magnanimidade de votar a sua vida ao estudo, se quiser robustecer o seu talento sôbre as páginas dos melhores mestres e consagrá-lo a trabalhos de mais fôrça, há de conquistar no futuro louros imperecíveis. A sua estréia é núncia de belos triunfos. Possa o jovem poeta preservar a sua lira do golpe funestíssimo que feriu a citara de Tamiris".
Receio bem que alguns dos meus leitores não sabiam quem foi Tamiris. Era esta entidade mitológica neto de Apolo. Tamiris desafiou um dia as Musas para ver quem melhor cantaria, e, no caso de se avantajar sôbre elas, estas se entregariam à sua discreção. O neto de Apolo perdeu o desfio, e as Musas lhe vasaram os olhos, fazendo-o esquecer, além disso, de tudo quanto sabia.
Felizmente, o poeta das "Flores do Campo" venceu as queridas camenas e, sobretudo, conseguiu ser amada por elas tôdas.
Porque, verdade, verdade, se Ezequiel, após a publicação do seu primeiro livro, raras vêzes, poetou, nem por isso deixou jamais de ser um poeta no rigor significante desta palavra, pôsto que com a irregularidade própria daquela forma literária.
Narcisa Amália, mais tarde, reconheceu isso mesmo.
Se foi, pois, uma notável poetisa quem lhe guiou os primeiros passos, outra poetisa não menos notável, pode-se dizer, foi quem lhe fechou os olhos da alma. Refiro-me à sr. Zalina Rolim, a quem o poeta igualmente enviou o mesmo cartão negro com aquela tristíssima súplica de um moribundo:
Por
conta de maior quantia
Reze por êle
Padre Nosso e Ave Maria!
A distinta cantora do "Coração", alma poética e piedosa, lhe fêz incontinenti a última vontade nos seguintes versos inéditos.
(Ao poeta e amigo).
Dá-lhe,
ó Mãe santa e clemente;
Vida e plácida alegria;
Conforta-lhe a alma doente...
Ave-Maria!
Reze
por êle a inocência
Cheia de graça! Alivia,
Doura, aclara-lhe a existência...
Ave-Maria!
Afasta-lhe,
ó Mãe do seio
O mal que o fere e agustia;
Dá saúde abre o veio,
Ave-Maria!
Outra delicada poetisa, d. Cândida Rolim, irmã de d. Zanila, exalçou também os votos nos seguintesversos inéditos:
(A Ezequiel Freire).
Rezemos,
flores, pedindo
Para o poeta a alegria;
Crianças, rezai por êle
"Padre-Nosso e Ave-Maria"!
Que
essa nuvem mensageira
De funda melancolia
Do seu coração se afaste...
"Padre-Nosso e Ave-Maria!
Bem sei que cometo uma indiscrição publicando os versos que aí ficam; mas valha-me a boa intenção, ao menos. O meu fim, ao estampá-los, foi mostrar ao leitor que o poeta sempre despertou no coração feminino a mais viva simpatia, a mais viva admiração.
Belo poeta! Ainda hoje quando releio os teus versos,
Cilícias
abertas a mêdo
Sob a folhagem da palma,
recordo-me do dia em que te fui apresentado e em que me acolheste com o mais meigo dos teus sorrisos. Tinhas uma rosa na lapela do teu casaco, uma delicada rosa-chá; e qual não foi minha surprêsa quando, ao me perguntares se gostava de flor, me prendeste à boutonnière aquela rosa, dizendo: "O poeta sempre gosta de flores".
Desde então, aquela flor foi o penhor de tua camaradagem em tudo que me dizia respeito; nunca me magoaste com uma palavra menos gentil; fraternizamo-nos como dois companheiros, que vão fazer uma longa viagem. Mas tu ficaste em caminho, com mêdo talvez dos sarçais domal em que a alma, não raro, machuca as asas; e te abrigaste ao seio da terra para apreciar mais de perto as flores, as aves, a poesia.
Belo poeta, Certo, do teu corpo, conforme já disse alguém, nasceram violetas, como pedia Laerte quando se enterrou Ofélia. O simile não é de espantar; a alma do poeta é imaculada e cândida como a das crianças e das virgens.
Wenceslau de Queiros
Fonte: Revista da Academia de Letras pag. 14 a 20 texto do autor Wenceslau de Queiros