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PAULO REGLUS NEVES FREIRE
mais conhecido como
PAULO FREIRE
A Voz da Esposa
A Trajetória de Paulo
Freire
Ana Maria Araújo Freire
1. Infância,
adolescência e primeiras experiências profissionais
2. O "Método Paulo
Freire
3. O educador
popular, exílio e retorno
4. Repercussão
da obra de Paulo Freire
5. O escritor Paulo
Freire
6. O ser humano
Paulo Freire
Escrever uma biografia de Paulo Freire tem para mim um sentido muito especial. Justifico: primeiro, porque somos mulher e marido, unidos por laços de amor e paixão; segundo, porque venho pesquisando a história da educação brasileira há muitos anos e, assim, falar sobre este educador é reviver também o processo de sua inserção nela, e isso é provocador e gratificante; terceiro, porque nos conhecemos por quase todas as nossas vidas, desde 1937. Ano em que, após exaustivas e infrutíferas caminhadas de sua mãe pelas ruas do Recife à procura de uma escola onde Paulo pudesse estudar, ele foi acolhido por meu pai que lhe ofereceu esta possibilidade. Conheci-o nos corredores do Colégio Oswaldo Cruz, de propriedade de meu pai, Aluízio Pessoa de Araújo, naquele distante Recife de 1937, quando eu tinha apenas quatro anos de idade e ele, tardiamente, aos 17 anos incompletos, começava o segundo ano do curso secundário.
Assim, com a percepção de mulher-esposa, de mulher-historiadora e, ao mesmo tempo, mulher-amiga, pretendo registrar aqui algumas informações sobre a vida e a obra dele.
Como seria impossível elencar todos os esforços de Paulo Freire, seja os do Brasil, seja os espalhados pelos mais diversos países, mencionarei, passo a passo, no corpo deste trabalho, algumas das suas contribuições e os reflexos destas na área político-educacional por todo o mundo. Acrescentarei também iniciativas em torno da compreensão de educação de Freire tomadas em várias partes dos diferentes continentes.
Este famoso educador, Paulo Reglus Neves
Freire, conhecido no Brasil e no
exterior apenas como Paulo Freire, nasceu em Recife, PE, em 19 de setembro de
1921, filho de Joaquim Temístocles Freire e Edeltrudes Neves
Freire.
1. Infância, adolescência e primeiras
experiências profissionais
Começou sua leitura da palavra iniciado por sua mãe escrevendo palavras com
gravetos das mangueiras, à sombra delas, no chão do quintal da casa onde nasceu,
na Estrada do Encanamento, 724, no bairro da Casa Amarela, como tanto gosta de
lembrar e de dizer.
Box 1
O LIVRO DO BEBÊA mãe de Paulo Freire escreveu um livro de bebê para ele, o caçula. Assim começa a narrativa, escrita numa letra belíssima:
"Paulo nasceu numa segunda-feira de tristeza e aflições, pois o seu Papá estava muito mal, sem esperanças de restabelecer-se, quase que o Paulinho seria órphão ao nascer, porém, o bom Jesus livrou-o dessa desaventura, presenteou-o restituindo a saúde ao seu Papá".
Neste livro, lê-se sobre um embaraço gástrico, uma erupção na pele, sua primeira lágrima notada tal dia.
Lê-se do "affeto extraordinário pelo paizinho", como o chama. "Só adormece nos seus brações, ouvindo-o cantar". A mãe diz que ele é "naturalmente carrancudo, porém muito amável. Brinca pouco, fica sempre de largo apreciando os irmãos brincarem". Seu período de dentição não lhe causou aflição, porém todas as vacinas pegaram. É muito viciado na chupeta e gosta muito de banana assada (até hoje, aliás).Fala da grande alegria da primeira carreira que "Paulinho" deu, num belo dia, sem ninguém esperar. Depois disso, não parou mais de correr. E que, quando cai, chora de raiva principalmente quando se suja. É "muito limpo e vaidoso", não passa sem sua água de Colônia. "Fica muito tempo sentado apreciando os irmãozinhos correrem". Quando perguntam por que não vai também, ele diz: "... gosto de ver as quedas". Seus pesinhos são muito sensíveis. Na hora de adormecer, chama o pai com os nomes mais amorosos possíveis e diz:"Toca violão bem baixinho e canta para eu dormir", ao que o pai atende e só o deixa depois de adormecido.
Sua mãe confessa também que ele é orgulhoso e que só falará quando souber mesmo. Fala do quanto que ele é afetuoso e ciumento e não consente que seus irmãozinhos aproximem-se da mãe, fica com raiva e diz logo "sai, sai, mamãe minha".
Paulo Freire foi uma criança muito devota, diz a mãe: "Com verdadeiro carinho pega no crucifixo". Ele não se conformava em ir à aula sem as lições prontas, chorava demais; enquanto não tinha certeza que sabia, não comparecia à aula", acrescentou ela.
Aos 10 anos de idade foi morar nas vizinhanças da capital pernambucana, em Jaboatão, uma cidadezinha 18 quilômetros distante de Recife, que, para Paulo, tem sabor de dor e de prazer, de sofrimento e de amor, de angústia e de crescimento. Nela, Paulo, aos 13 anos de idade, experimentou a dor da perda de seu pai, conheceu o prazer de conviver com os amigos e conhecidos que foram solidários naqueles tempos difíceis; sentiu o sofrimento quando viu sua mãe, precocemente viúva, lutar para sustentar a si e a seus quatro filhos, fortaleceu-se com o amor que entre eles aumentou por causa das dificuldades que juntos enfrentaram, sofreu a angústia devido às coisas perdidas e às provações materiais, espantou-se com o crescimento de seu corpo, mas, sem deixar que o menino o abandonasse definitivamente, permitiu que o adulto fosse conquistando espaço em sua existência. À medida que via seu corpo crescer, sentia também sua paixão pelo conhecimento aumentar.
Numa das notas que escrevi para a Pedagogia da esperança de Paulo disse o que julgo interessante transcrever aqui sobre sua relação com Jaboatão:
"Mas foi também em Jaboatão que sentiu, aprendeu e viveu a alegria no jogar futebol e no nadar pelo rio Jaboatão vendo as mulheres, de cócoras, lavando e 'batendo' nas pedras a roupa que lavavam para si, para a própria família, e para as famílias mais abastadas. Foi lá também que aprendeu a cantar e assobiar, coisas que até hoje tanto gosta de fazer, para se aliviar do cansaço de pensar e das tensões da vida do dia-a-dia; aprendeu a dialogar na 'roda de amigos' e aprendeu a valorizar sexualmente, a namorar e a amar as mulheres e por fim foi lá em Jaboatão que aprendeu a tomar para si, com paixão, os estudos das sintaxes popular e erudita da língua portuguesa.
Assim Jaboatão foi um espaço-tempo de aprendizagem, de dificuldades e de
alegrias vividas intensamente, que lhe ensinaram a harmonizar o equílibrio entre
o ter e o não-ter, o ser e não-ser, o poder e não-poder, o querer e não-querer.
Assim forjou-se Freire na disciplina da esperança". (Pedagogia da
esperança, p. 222)
Box 2
MINHA PRIMEIRA PROFESSORAA primeira presença em meu aprendizado escolar que me causou impacto, e causa até hoje, foi uma jovem professorinha. É claro que eu uso esse termo, professorinha, com muito afeto. Chamava-se Eunice Vasconcelos (1909-1977), e foi com ela que eu aprendi a fazer o que ela chamava de "sentenças".
Eu já sabia ler e escrever quando cheguei à escolinha particular de Eunice, aos 6 anos. Era, portanto, a década de 20. Eu havia sido alfabetizado em casa, por minha mãe e meu pai, durante uma infância marcada por dificuldades financeiras, mas também por muita harmonia familiar. Minha alfabetização não me foi nada enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha experiência, escritas com gravetos no chão de terra do quintal.
Não houve ruptura alguma entre o novo mundo que era a escolinha de Eunice e o mundo das minhas primeiras experiências - o de minha velha casa do Recife, onde nasci, com suas salas, seu terraço, seu quintal cheio de árvores frondosas. A minha alegria de viver, que me marca até hoje, se transferia de casa para a escola, ainda que cada uma tivesse suas características especiais. Isso porque a escola de Eunice não me amedrontava, não tolhia minha curiosidade.
Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos. Sem que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma indiscutível amorosidade que eu tenho hoje, e desde há muito tempo, pelos problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira, a chamada língua portuguesa no Brasil. Ela com certeza não me disse, mas é como se tivesse dito a mim, ainda criança pequena: "Paulo, repara bem como é bonita a maneira que a gente tem de falar!..." É como se ela me tivesse chamado.
Eu me entregava com prazer à tarefa de "formar sentenças". Era assim que ela costumava dizer. Eunice me pedia que colocasse numa folha de papel tantas palavras quantas eu conhecesse. Eu ia dando forma às sentenças com essas palavras que eu escolhia e escrevia. Então, Eunice debatia comigo o sentido, a significação de cada uma.
Fui criando naturalmente uma intimidade e um gosto com as ocorrências da língua - os verbos, seus modos, seus tempos... A professorinha só intervinha quando eu me via em dificuldade, mas nunca teve a preocupação de me fazer decorar regras gramaticais.
Mais tarde ficamos amigos. Mantive um contato próximo com ela, sua família, sua irmã Débora, até o golpe de 1964. Eu fui para o exílio e, de lá, me correspondia com Eunice. Tenho impressão de que durante dois anos ou três mandei cartas para ela. Eunice ficava muito contente.
Não se casou. Talvez isso tenha alguma relação com a abnegação, a amorosidade que a gente tem pela docência. E talvez ela tenha agido um pouco como eu: ao fazer a docência o meio da minha vida, eu termino transformando a docência no fim da minha vida.
Eunice foi professora do Estado, se aposentou, levou uma vida bem normal. Depois morreu, em 1977, eu ainda no exílio. Hoje, a presença dela são saudades, são lembranças vivas. Me faz até lembrar daquela música antiga, do Ataulfo Alves: "Ai, que saudade da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá' (Paulo Freire, publicado pela Revista Nova Escola em dezembro de 1994).
Foi em Jaboatão que Paulo concluiu a escola primária. Em seguida, fez o
primeiro ano ginasial no Colégio 14 de Julho que, funcionando no bairro de São
José, era na verdade um prolongamento do Colégio Francês Chateaubriand, situado
na Rua da Harmonia, 150, Casa Amarela, onde se realizavam os exames finais. Após
este primeiro ano de estudos secundários sob a tutela do professor de matemática
Luiz Soares, ingressou no Colégio Oswaldo Cruz, também em Recife. Neste
educandário, completou os sete anos dos estudos secundários - cursos fundamental
e pré-jurídico - ingressando, aos 22 anos de idade, na secular Faculdade de
Direito do Recife. Fez esta "opção" por ser a que se oferecia dentro da área de
ciências humanas. Na época, não havia em Pernambuco curso superior de formação
de educador .
Box 3
PAULO FREIRE NO COLÉGIO OSWALDO CRUZVICENTE MADEIRA, Pró-Reitor de Pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba, PERGUNTA (1988): Paulo, você estudou em escola pública ou privada?
PAULO FREIRE: Eu fiz a escola primária exatamente no período mais duro da fome. Não da "fome" intensa, mas de uma fome suficiente para atrapalhar o aprendizado. Quando terminei meu exame de admissão, era alto, grande, anguloso, feio. Já tinha esse tamanho e pesava 47 quilos. Usava calças curtas, porque minha mãe não tinha condições de comprar calça comprida. E as calças curtas, enormes, sublinhavam a altura do adolescente. Eu consegui fazer, Deus sabe como, o primeiro ano de ginásio com 16 anos. Idade com que os meus colegas de geração, cujos pais tinham dinheiro, já estavam entrando na faculdade. Fiz esse primeiro ano de ginásio num desses colégios privados, em Recife; em Jaboatão só havia escola primária. Mas, minha mãe não tinha condições de continuar pagando a mensalidade e, então, foi uma verdadeira maratona para conseguir um colégio que me recebesse com uma bolsa de estudos. Finalmente ela encontrou o Colégio Oswaldo Cruz e o dono desse colégio, Aluízio Araújo, que fora antes seminarista, casado com uma senhora extraordinária, a quem eu quero um imenso bem, resolveu atender o pedido de minha mãe. Eu me lembro que ela chegou em casa radiante e disse: "Olha, a única exigência que o Dr. Aluízio fez é que você fosse estudioso". Eu, poxa, eu gostava muito de estudar e fui então para o Colégio Oswaldo Cruz, onde me tornei, mais adiante, professor. Aluízio Araújo já morreu, mas Elza e eu tivemos a grande satisfação de recebê-lo e à mulher, durante 15 dias, em nossa casa em Genebra, em 1977. E, em 1979, depois de quase 16 anos de exílio, quando viemos visitar o Brasil, estavam os dois, Aluízio e Genove, no aeroporto em Recife, nos esperando. Ele já bem acabado, velhinho, e jantamos juntos depois. Na nossa volta para Genebra ele faleceu. E eu não tenho dúvida de dizer aqui, nesta entrevista, que se não fossem eles, possivelmente esta entrevista não estaria sendo realizada. Foram eles que criaram as condições para o meu desenvolvimento... É evidente que eles não poderiam ter-me fabricado, as pessoas não são fabricadas, mas a dimensão de minha experiência individual tem a ver muito com eles (In: Revista Ensaio, nº 14, 1985, p. 5).
Antes de ter concluído seus estudos universitários, casou-se, em 1944, com a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, com quem teve cinco filhos: Maria Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgardes. Ainda nesse tempo, tornou-se professor de língua portuguesa do Colégio Oswaldo Cruz, educandário que o tinha acolhido na adolescência.
É interessante lembrar que foi este trabalho de professor de Português, mais seu corpo franzino que o pouparam de ir lutar com a F.E.B. nos campos da Itália, quando da II Grande Guerra.
Após a experiência de docência no mesmo estabelecimento de ensino em que havia estudado, foi ser diretor do setor de Educação e Cultura do Sesi, órgão recém-criado pela Confederação Nacional da Indústria através de um acordo com o governo Vargas. Aí teve contato com a educação de adultos/trabalhadores e sentiu o quanto eles e a nação precisavam enfrentar a questão da educação e mais particularmente, da alfabetização. Freire ocupou o cargo de Diretor desse setor do Sesi de 1947 a 1954 e foi Superintendente do mesmo de 1954 a 1957.
Ao lado de outros educadores e pessoas interessadas na educação escolarizada, sob a liderança de Raquel Castro, fundou nos anos cinqüenta o Instituto Capibaribe. Instituição de ensino privado conhecida até hoje em Recife pelo seu alto nível de ensino e de formação científica, ética e moral voltada para a consciência democrática.
Em 9 de agosto de 1956, o prefeito progressista Pelópidas Silveira, usando de atribuições a ele concedidas pelo Decreto nº. 1555, de 09.08.1956, nomeou Paulo Freire, ao lado de mais oito notáveis educadores pernambucanos, membro do Conselho Consultivo de Educação do Recife. Alguns anos depois, foi designado para o cargo de Diretor da Divisão de Cultura e Recreação do Departamento de Documentação e Cultura da Prefeitura Municipal do Recife, conforme atestado assinado por Germano Coelho, em 14 de julho de 1961.
Teve suas primeiras experiências como professor de nível superior lecionando Filosofia da Educação na Escola de Serviço Social a qual, posteriormente, foi incorporada à então Universidade do Recife.
Em fins de 1959, prestou concurso e obteve o título de Doutor em Filosofia e História da Educação, defendendo a tese "Educação e atualidade brasileira". Esta titularidade assegurou-lhe, através da Portaria nº. 30 de 30 de novembro de 1960, assinada pelo Reitor João Alfredo da Costa Lima, a nomeação de professor efetivo (nível 17) de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade do Recife, tendo tomado posse em 2 de janeiro de 1961.
No ano seguinte, pela Portaria nº. 37, de 14 de agosto de 1961, assinada pelo mesmo reitor, foi-lhe também conferido o certificado de Livre Docente da cadeira de História e Filosofia da Educação da Escola de Belas Artes, uma vez que o concurso tinha lhe dado, por força da lei vigente, além do título de doutor, o de Livre Docente. Freire tomou posse nesta função em 23 de abril de 1962, diante da Congregação da escola, conforme convite anteriormente distribuído pela Secretaria da mesma, datado de 18 de abril de 1962.
Paulo Freire foi também um dos "Conselheiros Pioneiros" do Conselho Estadual de Educação de Pernambuco. "Conselheiros Pioneiros", conforme demonstram os registros nos arquivos, foi a expressão com a qual os próprios integrantes se autodenominaram. Esses primeiros conselheiros, em número de quinze, foram escolhidos pelo governador Miguel Arraes, de acordo com a lei, dentre as "pessoas de notório saber e experiência em matéria de educação e cultura" do Estado pernambucano. Eles tomaram posse em novembro de 1963 e, conforme lei estadual preconizada pelo artigo nº. 10 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº. 4024/61, foram responsáveis pela elaboração do Primeiro Regimento do Conselho o qual foi aprovado pelo mesmo governador que os escolheu através do Decreto nº. 928, de 03 de março de 1964, publicado no Diário Oficial, em 06 de março subseqüente.
No dia 31 de março de 1964, quando o cerco golpista já se avizinhava, treze deles renunciaram coletivamente a seus mandatos. Paulo Freire, que se encontrava em Brasília ativamente envolvido com os trabalhos do Programa Nacional de Alfabetização e, por isso, não pôde assinar o pedido de exoneração coletiva, foi destituído de suas funções de Conselheiro pelo Decreto nº. 942, de 20 de abril de 1964, assinado pelo Vice-Governador Paulo Guerra porque o Governador Miguel Arraes já estava preso pelas novas forças que tomaram o poder.
Foi como Relator da Comissão Regional de Pernambuco e autor do relatório intitulado "A Educação de Adultos e as Populações Marginais: O Problema dos Mocambos", apresentado no II Congresso Nacional de Educação de Adultos em julho de 1958, no Rio de Janeiro, que Paulo Freire firmou-se como educador progressista. Com uma linguagem muito peculiar e com uma filosofia da educação absolutamente renovadora, ele propunha, no relatório, que a educação de adultos das Zonas dos Mocambos existentes no Estado de Pernambuco teria que se fundamentar na consciência da realidade da cotidianidade vivida pelos alfabetizandos para jamais reduzir-se num simples conhecer de letras, palavras e frases. Afirmava também que só se faria um trabalho educativo para a democracia se o processo de alfabetização de adultos não fosse sobre - verticalmente - ou para - assistencialmente - o homem, mas com o homem (nos anos 50 e até após a publicação , no início dos anos setenta nos Estados Unidos, da Pedagogia do oprimido, Freire não nominava mulheres, entendendo, erroneamente, que, ao dizer homem, incluía a mulher), com os educandos e com a realidade. Propôs uma educação de adultos que estimulasse a colaboração, a decisão, a participação e a responsabilidade social e política. Freire, atento à categoria do saber que é apreendido existencialmente, pelo conhecimento vivo de seus problemas e os de sua comunidade local, já explicitava o seu respeito ao conhecimento popular, ao senso comum.
Paulo falava em educação social, falava na necessidade de o aluno, além de se conhecer, conhecer também os problemas sociais que o afligiam. Ele não via a educação simplesmente como meio para dominar os padrões acadêmicos de escolarização ou para profissionalizar-se. Falava da necessidade de se estimular o povo a participar do seu processo de emersão na vida pública engajando-se no todo social.
Acrescentava o relator que aos próprios educandos caberia, em parte, programar seus conteúdos de estudos e que se deveria estimular o trabalho pedagógico nos mocambos para que a mulher superasse suas condições de miséria mudando a natureza de suas próprias práticas domésticas.
A realização do II Congresso Nacional de Educação se deu entre 06 e 16 de julho de 1958, ano em que Juscelino Kubitscheck se afirmava enquanto força no poder e se mostrava preocupado com as misérias de nosso povo. Queria e precisava dar soluções para os problemas sociais, entre eles o educacional. Tentou resolve-los dentro dos marcos do populismo, a ideologia privilegiada de então. Mas as idéias, o discurso e a prática de Freire já se faziam por um caminho autenticamente popular.
Os anseios da sociedade política vinham ao encontro dos de uma parte da sociedade civil dos anos 50, alimentando um clima propício para a mobilização, para as reflexões e para as pretensões de mudanças sociais e políticas. Freire, assim, traduziu as necessidades de seu tempo e nelas se engajou.
Este segmento mais progressista da sociedade civil brasileira - composto por operários, campesinato, estudantes, professores universitários, intelectuais e clero católico - do qual Freire fazia parte estava inclinado não a acomodar-se, mas a romper com as tradições arcaicas, autoritárias, discriminatórias, elitistas e interditadoras, secularmente vigentes no Brasil.
Enquanto muitos representantes da sociedade política hegemônica da época pensavam e tentavam equacionar soluções para o desenvolvimento econômico, alguns da sociedade civil se indignavam com a pobreza, as injustiças sociais e o generalizado analfabetismo de nosso povo. Freire foi um destes e assim foi se tornando, desde aquele período, o pedagogo da indignação.
Sua pedagogia continha a percepção clara da cotidianidade discriminatória da nossa sociedade até então preponderantemente patriarcal e elitista. Apontava soluções de superação das condições vigentes, avançadas para a época, dentro de uma concepção mais ampla e mais progressista: a da educação como ato político. Tudo isto era novo no Brasil que ainda reproduzia, impiedosa e secularmente, a interdição dos corpos dos desvalorizados socialmente, que, assim viviam proibidos de ser, ter, saber e poder.
Esta natureza política da educação, antes mesmo que sua especificidade pedagógica, técnica e didática, tem sido o cerne da preocupação freireana tanto em suas reflexões teóricas quanto na sua práxis educativa.
Freire forjava-se, pela práxis vivida, como pedagogo do oprimido - mesmo sem ter ainda escrito a Pedagogia do oprimido - porque partia do saber popular, da linguagem popular, da necessidade popular, respeitando o concreto deles, o cotidiano de limitações deles. Além disso, não ficando no ponto de partida, apresentava uma proposta de superação deste mundo de submissão, de silêncio e de misérias, apontando para um mundo de possibilidades.
Com todas essas inovações, o Relatório apresentado no II Congresso de
Educação de Adultos tornou-se, indubitavelmente, um marco na compreensão
pedagógica da época, um divisor de águas entre uma educação neutra, alienante e
universalizante e uma essencialmente radicada no cotidiano político-existencial
dos alfabetizandos e das alfabetizandas, não se reduzindo a ele,
obviamente.
Creio que é preciso, mesmo que numa biografia, fazer algumas considerações sobre o "Método Paulo Freire" uma vez que ele é ainda muito utilizado, com algumas adaptações, nos dias de hoje em todo o mundo, e quase sempre ao falar-se de Freire e alfabetização, a compreensão desta é reduzida a puro conjunto de técnicas ligadas à aprendizagem da leitura e da escrita. É preciso deixar este ponto mais claro para, sobretudo, quem se inicia em Freire.
O "convite" de Freire ao alfabetizando adulto é, inicialmente, para que ele se veja enquanto homem ou mulher vivendo e produzindo em determinada sociedade. Convida o analfabeto a sair da apatia e do conformismo de "demitido da vida" em que quase sempre se encontra e desafia-o a compreender que ele próprio é também um fazedor de cultura, fazendo-o apreender o conceito antropológico de cultura. O "ser-menos" das camadas populares é trabalhado para não ser entendido como desígnio divino ou sina, mas como determinação do contexto econômico-político-ideológico da sociedade em que vivem.
Quando o homem e a mulher se percebem como fazedores de cultura, está vencido, ou quase vencido, o primeiro passo para sentirem a importância, a necessidade e a possibilidade de se apropriarem da leitura e da escrita. Estão alfabetizando-se, politicamente falando.
Os participantes do "círculo de cultura", em diálogo sobre o objeto a ser conhecido e sobre a representação da realidade a ser decodificada, respondem às questões provocadas pelo coordenador do grupo, aprofundando suas leituras do mundo. O debate que surge daí possibilita uma re-leitura da realidade de que pode resultar o engajamento do alfabetizando em práticas políticas com vista à transformação da sociedade.
Quê? Por quê? Como? Para quê? Por quem? Para quem? Contra quê? Contra quem? A favor de quem? A favor de quê? - são perguntas que provocam os alfabetizandos em torno da substantividade das coisas, da razão de ser delas, de suas finalidades, do modo como se fazem, etc.
As atividades de alfabetização exigem a pesquisa do que Freire chama "universo vocabular mínimo" entre os alfabetizandos. É trabalhando este universo que se escolhem as palavras que farão parte do programa. Estas palavras , mais ou menos dezessete, chamadas "palavras geradoras", devem ser palavras de grande riqueza fonêmica e colocadas, necessariamente, em ordem crescente das menores para as maiores dificuldades fonéticas, lidas dentro do contexto mais amplo da vida dos alfabetizandos e da linguagem local, que por isso mesmo é também nacional.
A decodificação da palavra escrita, que vem em seguida à decodificação da situação existencial codificada, compreende alguns passos que devem, rigorosamente se suceder.
Tomemos a palavra TIJOLO, usada como a primeira palavra em Brasília, nos anos 60, escolhida por ser uma cidade em construção, para facilitar o entendimento do(a) leitor (a).
1º.) Apresenta-se a palavra geradora "tijolo" inserida na representação de
uma situação concreta: homens trabalhando numa construção;
2º.)
Escreve-se simplesmente a palavra
TIJOLO
3º.) Escreve-se a mesma
palavra com as sílabas separadas:
TI - JO - LO
4º.) Apresenta-se a
"família fonêmica" da primeira sílaba:
TA - TE - TI - TO - TU
5º.)
Apresenta-se a "família fonêmica" da segunda sílaba:
JA - JE - JI - JO -
JU
6º.) Apresenta-se a "família fonêmica" da terceira sílaba :
LA - LE
- LI - LO - LU
7º.) Apresentam-se as "famílias fonêmicas" da palavra que
está sendo decodificada:
TA - TE - TI - TO - TU
JA - JE - JI - JO -
JU
LA - LE - LI - LO - LU
Este conjunto das "famílias fonêmicas" da palavra geradora foi denominado de "ficha de descoberta" pois ele propicia ao alfabetizando juntar os "pedaços", isto é, fazer dessas sílabas novas combinações fonêmicas que necessariamente devem formar palavras da língua portuguesa.
8º.) Apresentam-se as vogais :
A - E - I - O - U .
Em síntese, no momento em que o(a) alfabetizando(a) consegue, articulando as sílabas, formar palavras, ele ou ela, está alfabetizado (a). O processo requer, evidentemente, aprofundamento, ou seja, a pós-alfabetização.
A eficácia e validade do "Método" consistem em partir da realidade do alfabetizando, do que ele já conhece, do valor pragmático das coisas e fatos de sua vida cotidiana, de suas situações existenciais. Respeitando o senso comum e dele partindo, Freire propõe a sua superação.
O "Método" obedece às normas metodológicas e lingüísticas, mas vai além delas, porque desafia o homem e a mulher que se alfabetizam a se apropriarem do código escrito e a se politizarem, tendo uma visão de totalidade da linguagem e do mundo.
O "Método" nega a mera repetição alienada e alienante de frases, palavras e sílabas, ao propor aos alfabetizandos "ler o mundo" e "ler a palavra", leituras, aliás, como enfatiza Freire, indissociáveis. Daí ter vindo se posicionando contra as cartilhas.
Em suma, o trabalho de Paulo Freire é mais do que um método que alfabetiza, é uma ampla e profunda compreensão da educação que tem como cerne de suas preocupações a sua natureza política.
Concluiria esta abordagem sobre o "Método Paulo Freire" dizendo que a alfabetização do povo brasileiro - porque quando o criou jamais pensava que ele se expandiria pelo mundo - era então, no bom sentido da palavra uma tática educativa para atingir a estratégia necessária: a politização do povo brasileiro. Nesse sentido, é revolucionário porque ele pode tirar da situação de submissão, de imersão e de passividade aqueles e aquelas que ainda não conhecem a palavra escrita. A revolução pensada por Freire não pressupõe uma inversão nos pólos oprimido-opressor, antes, pretende re-inventar, em comunhão, uma sociedade onde não haja a exploração e a verticalidade do mando, onde não haja a exclusão ou a interdição da leitura do mundo aos segmentos desprivilegiados da sociedade.
Paulo Freire esteve no exílio por quase dezesseis anos, exatamente porque
compreendeu a educação desta maneira e lutou para que um grande número de
brasileiros e brasileiras tivesse acesso a esse bem a eles negado secularmente:
o ato de ler a palavra lendo o mundo.
3. O educador popular, exílio e
retorno
Paulo Freire, extrapolando a área acadêmica e institucional, engajou-se também nos movimentos de educação popular do início dos anos sessenta. Foi um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular (M.C.P.) do Recife, e nele trabalhou, ao lado de outros intelectuais e do povo, no sentido de, através da valorização da cultura popular, contribuir para a presença participativa das massas populares na sociedade brasileira.
Este primeiro Movimento de Cultura Popular do Brasil marcou profundamente a formação profissional, política e afetiva do educador pernambucano.
Por suas concepções de educador popular progressista, influenciou a campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler", realizada com sucesso pelo então governo popular do Prefeito Djalma Maranhão, de Natal, Rio Grande do Norte.
Ao organizar e dirigir a campanha de alfabetização de Angicos, também no Rio Grande do Norte, Freire ficou mais conhecido nacionalmente como educador voltado para as questões do povo. Logo depois, foi para Brasília a convite do recém-empossado Ministro da Educação Paulo de Tarso Santos, do governo Goulart, para realizar uma campanha nacional de alfabetização.
Nasceu assim, sob sua coordenação, o Programa Nacional de Alfabetização, que pelo "Método Paulo Freire" tencionava alfabetizar, politizando, 5 milhões de adultos. Estes poderiam, pela lei vigente da época, fazer parte, em futuro próximo, do ainda restrito colégio eleitoral brasileiro do início dos anos sessenta. Tinham votado na recente eleição presidencial, na qual saíram vencedores o Sr. Jânio da Silva Quadros e João Belchior Goulart, apenas pouco mais de 11 milhões e seiscentos mil eleitores.
No seu processo de alfabetização, estes novos eleitores, provenientes das
camadas populares, seriam desafiados a perceber as injustiças que os oprimiam e
a necessidade de lutar por mudanças. As classes dominantes identificaram a
ameaça e, obviamente, colocaram-se contra o Programa, que, oficializado em 21 de
janeiro de 1964, pelo Decreto nº 53.465, foi extinto pelo governo militar em 14
de abril do mesmo ano através do decreto nº. 53.886.
Box 4
CARTA A CLODOMIR MORAES
Lembrando os ensinamentos da prisãoClodomir, velho de guerra,
amigo-irmão,
nas minhas conversas comigo mesmo sempre lembrado;
nas minhas conversas com outras gentes,
nas minhas memórias de nossas "férias" passadas
juntos, no R-2, lá em Olinda, lembro sempre.
Amigo-irmão, velho de guerra,
que me ensinou, com paciência, como viver entre paredes;
como falar, com coronéis, jamais dizendo um aliás;
que me ensinou a humildade, não só a mim,
também aos outros que lá estavam, na prisão
grande da bela Olinda, não com palavras que o vento leva,
mas com exemplo - palavração!
que me contou estórias lindas de Pedro Bunda e
seu irmão - "pencas de almas" dependuradas
em fortes troncos, na solidão;
soldados alemães desembarcados no São Francisco.
que me falou, com amor tanto, de seu povo
lá do sertão, de seus poetas, de seus músicos, de seus maestros.
Clodomir, Colodomiro, velho de guerra,
amigo-irmão, sempre lembrado, agora, de longe,
de bem longe, te mando a ti, a Célia e aos que de ambos já chegaram,
uma penca enorme de abraços nossos.Paulo
Genève, 16.01.75Clodomir Santos de Moraes foi companheiro de prisão de Paulo Freire, numa cadeia do quartel de Olinda, pouco tempo depois de se conhecerem em Recife. Advogado, organizador e assessor das Ligas Camponesas dos anos 60, foi eleito deputado federal e cassado em 1964. Trabalhou em diversos países como funcionário da OIT. É autor de Elementos sobre a teoria da organização do Campo.
Por duas vezes em Recife, Paulo Freire foi obrigado a vir ao Rio de Janeiro responder a inquérito policial-militar. Sentindo-se ameaçado, asilou-se na embaixada da Bolívia e partiu para aquele país em setembro de 1964, com apenas 43 anos de idade, levando consigo o "pecado" de ter amado demais o seu povo e se empenhado em politizá-lo para que sofresse menos e participasse mais das decisões. Queria contribuir na construção da consciência dos oprimidos e na busca pela superação de sua secular interdição na sociedade. Jamais falou ou foi adepto da violência ou da tomada do poder pela força das armas. Esteve desde jovem a refletir sobre a educação e a se engajar nas ações políticas mediadas pela prática educacional que pode ser transformadora. Lutou e vem lutando sem descanso por uma sociedade mais justa e menos perversa, como gosta de dizer, por uma sociedade realmente democrática, na qual não haja repressores contra oprimidos, na qual todos possam ter voz e vez.
Tendo partido de São Paulo, sob a guarda e proteção do próprio Embaixador da Bolívia, para esse país vizinho, que o acolheu generosamente, sentiu em La Paz sua saúde abalada devido à localização alta desta cidade que fica no cume das montanhas dos Andes. Mas foi o Golpe de Estado na Bolívia, ocorrido pouco tempo depois de sua chegada, que o levou ao Chile. Em Santiago, ao lado de sua família, iniciou, como tantos outros brasileiros que no Chile tiveram asilo político, uma nova etapa de sua vida e de sua obra. Neste país viveu de novembro de 1964 a abril de 1969, trabalhando como assessor do Instituto de Desarollo Agropecuário e do Ministério da Educação do Chile e como consultor da UNESCO junto ao Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agrária do Chile. Nessa ocasião foi convidado também para lecionar nos Estados Unidos e trabalhar no Conselho Mundial das Igrejas. Atendeu aos dois convites.
De abril de 1969 a fevereiro de 1970 morou em Cambridge, Massachussetts, dando aulas sobre suas próprias reflexões na Universidade de Harvard, como Professor Convidado. Em seguida, mudou-se para Genebra para ser Consultor Especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas.
À serviço do Conselho, "andarilhou", como gosta de dizer, pela África, pela Ásia, pela Oceania e pela América, com exceção do Brasil - para sua tristeza -, ajudava, principalmente, os países que tinham conquistado sua independência política a sistematizarem seus planos de educação. Cabo Verde, Angola e sobretudo Guiné-Bissau o conheceram por este seu trabalho quando se empenhavam nos anos 60 para livrarem-se das garras do colonialismo, para extirpar os resquícios do opressor que tinha feito de muitos dos corpos negros africanos cabeças brancas de portugueses de além-mar. Esses povos queriam e precisavam se libertar da "consciência hospedeira da opressão" para se tornarem cidadãos de seus países e do mundo. Freire os assistiu nesta difícil tarefa.
Na Suíça, Paulo Freire foi também professor da Universidade de Genebra, levando aos alunos da Faculdade de Educação suas idéias e reflexões.
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QUE PAÍS É ESTE?Exmo. Sr. Presidente Ernesto Geisel,
Considerando as instruções dadas por V.Sª. de que sejam negados passaportes aos senhores Francisco Julião, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Luiz Prestes, Paulo Schilling, Gregório Bezerra, Márcio Moreira Alves e Paulo Freire.
Considerando que, desde que nasci, me identifico plenamente com a pele, a cor dos cabelos, estatura, cultura, o sorriso, as aspirações, a língua, a música, a história e o sangue destes oito senhores.
Considerando tudo isto, por imperativo da minha consciência e honestidade de princípio, venho por meio desta devolver o passaporte, que, negado a eles, me foi concedido (certamente por engano) pelos órgãos competentes do seu governo.
Juro pela minha mãe, que eu pensava estar vivendo em meu país há 34 anos!
Solicito a compreensão de V.Sª. no sentido de me conceder um prazo de 30 dias para que eu possa desocupar o seu país com todos os meus pertences em direção à minha (e a dos 8) verdadeira pátria, o Brasil.
Desculpe o engano. Que confusão, siô !
Atenciosamente,
Henfil, janeiro de 1979P.S.: Só prá me informar: que país é este?
Ganha seu primeiro passaporte brasileiro em junho de 1979 e, em agosto do mesmo ano, sob o clima da anistia política, chega ao Brasil pelo Aeroporto de Viracopos, SP, onde foi recebido, calorosamente, por parentes, amigos e admiradores para, conforme afirmou à imprensa brasileira naquele momento, "re-aprender meu país".
Aceitou ser professor da PUC-SP. Retornou à Europa e organizou sua volta definitiva ao Brasil. Abriu mão dos direitos concedidos pelo governo suíço para lá residir e poder viajar pelo mundo com credenciais que lhe davam garantias pessoais.
Voltou de fato em junho de 1980 para se integrar e se entregar definitivamente ao seu país e ao seu povo. Mas condições políticas ainda difíceis o impediram de voltar, como tanto sonhou no exílio, à sua tão querida e decantada Recife. Veio para São Paulo que lhe abriu as portas como se ele fosse um filho seu que voltasse. Devido à possibilidade aberta pela Lei de Anistia e pelo espírito democrático da reitoria da PUC, pôde ficar para trabalhar, amar e criar em seu próprio país.
Paulo Freire teve que recomeçar, mais uma vez, tudo do princípio pois, para a reintegração aos antigos cargos, a Lei de Anistia exigia que o ex-exilado requeresse ao governo o estudo de seu caso. Por considerá-la ofensiva, recusou-se a aceitar tal exigência, tanto no caso da docência, como no de técnico da Universidade Federal de Pernambuco como tinha passado a denominar-se a antiga Universidade do Recife.
Assim pensando e agindo, recomeçou, mais uma vez, tudo do princípio porque o 1º. de abril de 1964 o tinha demitido, sumariamente, do cargo de diretor do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife. Ele, que tinha sido um dos fundadores e que tão entusiástica e coerentemente o dirigia, não foi poupado pelas forças da direita. Foi no SEC da Universidade do Recife que ele teve a possibilidade de sistematizar o "Método Paulo Freire" e prestar outros serviços relevantes à população local com a Rádio Educativa da Universidade, esta também por ele idealizada. O golpe militar ainda o tinha aposentado das funções de professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da mesma Universidade, em 08 de outubro de 1964, por Decreto publicado no dia 09 subseqüente.
Em setembro de 1980, após pressões dos estudantes e de alguns professores, tornou-se professor da Universidade de Campinas - UNICAMP, onde lecionou até o final do ano letivo de 1990.
A reitoria da UNICAMP pediu ao Conselho Diretor, na pessoa do Professor Titular Rubem Alves um "Parecer sobre Paulo Freire". O pedido pareceu um absurdo e fez lembrar as perseguições que Freire sofreu durante os anos de exílio. Antes, eram passaportes negados, agora eram pareceres. Antes, "coisas da ditadura", era o repúdio do presidente do MOBRAL e sua comitiva em Persépolis, Irã, em 1975, que obedientes às ordens do governo militar de Brasília se ausentaram para não presenciar a entrega do prêmio internacional da UNESCO que estava sendo conferido ao educador brasileiro; agora, "coisas do entulho autoritário", na exigência da "legitimidade" de torná-lo Professor Titular.
As palavras de Rubem Alves, um dos intelectuais mais famosos e respeitados do país, dizem mais:
"O objetivo de um parecer, como a própria palavra o sugere, é dizer a alguém que supostamente nada ouviu e que, por isto mesmo, nada sabe, aquilo que parece ser, aos olhos do que fala ou escreve. Quem dá um parecer empresta os seus olhos e o seu discernimento a um outro que não viu e nem pôde meditar sobre a questão em pauta. Isto é necessário porque os problemas são muitos e os nossos olhos são apenas dois...
Há, entretanto, certas questões sobre as quais emitir um parecer é quase uma ofensa. Emitir um parecer sobre Nietzsche ou sobre Beethoven ou sobre Cecília Meireles? Para isto seria necessário que o signatário do documento fosse maior que eles e o seu nome mais conhecido e mais digno de confiança que aqueles sobre quem escreve...
Um parecer sobre Paulo Reglus Neves Freire.
O seu nome é conhecido em universidades através do mundo todo. Não o será aqui, na UNICAMP? E será por isto que deverei acrescentar a minha assinatura (nome conhecido, doméstico), como avalista?
Seus livros, não sei em quantas línguas estarão publicados. Imagino (e bem pode ser que eu esteja errado) que nenhum outro dos nossos docentes terá publicado tanto, em tantas línguas. As teses que já se escreveram sobre seu pensamento formam bibliografias de muitas páginas. E os artigos escritos sobre o seu pensamento e a sua prática educativa, se publicados, seriam livros.
O seu nome, por si só sem pareceres domésticos que o avalizem, transita pelas universidades da América do Norte e da Europa. E quem quisesse acrescentar a este nome a sua própria "carta de apresentação" só faria papel ridículo.
Não. Não posso pressupor que este nome não seja conhecido na UNICAMP. Isto seria ofender aqueles que compõem seus órgãos decisórios.
Por isso o meu parecer é uma recusa em dar um parecer. E nesta recusa vai, de forma implícita e explícita, o espanto de que eu devesse acrescentar o meu nome ao de Paulo Freire. Como se, sem o meu, ele não se sustentasse.
Mas ele se sustenta sozinho.
Paulo Freire atingiu o ponto máximo que um educador pode
atingir.
A questão é se desejamos tê-lo conosco.
A questão é se ele deseja trabalhar ao nosso lado.
É bom dizer aos amigos:
" - Paulo Freire é meu colega. Temos salas no mesmo corredor da Faculdade de Educação da UNICAMP..."
Era o que me cumpria dizer."
Este parecer datado de 25 de maio de 1985, escrito por Rubem Alves, Professor Titular II, está protocolado sob nº. 4838/80, nos registros administrativos da Universidade Estadual de Campinas. Coisas da burocracia estatal paulista que esperou cinco anos para outorgar-lhe a titularidade, justamente a um educador que, além de estar dando sistematicamente suas aulas semanais na Faculdade de Educação da própria Universidade, nos cursos de graduação e nos de pós-graduação, era famoso em todo o mundo há muito mais do que cinco anos, como sabemos e o parecer evidencia.
Paulo Freire vem permanecendo na categoria de professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco desde 1964, cargo que, diante das condições que lhe foram impostas, representa para ele um momento maior do que a saudade dos tempos da comunicação do saber construído, do saber criando-se e da amorosiade na relação com seus alunos. Ele o tem como uma de suas maiores honras.
Quanto ao cargo de Técnico em Educação no Serviço de Extensão Cultural que tão entusiasticamente ocupou, criando aí, entre outras coisas, a rádio educativa, mantida até hoje pela Universidade Federal de Pernambuco, teve recentemente, o reconhecimento de seus direitos pelo Ministério da Educação. Assim, foi reincorporado neste cargo aos quadros da Universidade, mas como reside em São Paulo, foi em seguida aposentado com tempo parcial de trabalho, em março de 1991.
Na ocasião, escreveu ao Ministro agradecendo, em seu nome e no de sua família, o reconhecimento do governo "por ato de sana injustiça há tanto tempo praticada".
Por causa disto, pediu demissão do cargo de professor da UNICAMP, pois a Constituição Brasileira de 1988 proíbe a acumulação de mais de dois cargos públicos e/ou suas aposentadorias. Na sua carta de demissão ao reitor, lamentou seu afastamento da UNICAMP no início do ano letivo de 1991, quer pela luta estudantil e dos professores para sua admissão quer pelas condições internas de alto nível dos trabalhos ali realizados desde sua criação pelo Professor Zeferino Vaz.
Com a morte de sua primeira esposa, em outubro de 1986, Freire abateu-se até quando, optando pela vida, casa-se novamente, em 27 de março de 1988, no Recife, com a autora desta biografia. Depois de termos sido amigos na infância, pudemos nos reencontrar no curso de mestrado da Pontifícia Universidade Católica. Eu era aluna-orientanda e ele professor-orientador. Ambos viúvos. Nossa relação ganhou novo significado. Sentimos que, ao carinho de amigos, somaram-se a paixão e o amor. Casamo-nos.
Comigo, Nita - nome carinhoso com que me chama -, pôde iniciar nova etapa de sua vida, inclusive aceitando novos desafios como homem público. Em 1º de janeiro de 1989 foi empossado como Secretário da Educação do Município de São Paulo, justamente porque o Partido dos Trabalhadores, partido do qual é um dos fundadores, chegou ao poder com a eleição de Luiza Erundina de Souza para Prefeita de São Paulo.
Na gestão altamente democrática de Freire, ele deu provas de que os trabalhos em colegiados e o entendimento mútuo levam à responsabilidade coletiva e à reinvenção do ato de educar com mais eficiência e adequação.
Suas decisões políticas, nascidas de sua própria teoria e de suas práticas de educador pelo mundo - não seria exagero dizer do mundo - como também nascidas da práxis educativa das pessoas da equipe técnica que o assessorou, as quais traduziam a vontade e a necessidade das comunidades, marcaram, indelevelmente, a educação da rede de ensino do município de São Paulo.
Assim, "seu" trabalho foi profícuo "mudando a cara da escola", como costuma dizer. Reformou as escolas entregando-as às comunidades locais dotadas de todas as condições para o pleno exercício das atividades pedagógicas. Reformulou o currículo escolar para adequá-lo também às crianças das classes populares e procurou capacitar melhor o professorado em regime de formação permanente. Não esqueceu de incluir o pessoal instrumental da escola como agente educativo formando-o para desempenhar adequadamente tal tarefa. Eram os vigias, as merendeiras, as faxineiras, os (as) secretários (as) que, ao lado de diretores (as) , professores (as), alunos (as), e pais de alunos, faziam do ato de educar um ato de conhecimento, elaborado em cooperação a partir das necessidades socialmente sentidas.
Afastou-se do cargo de secretário Municipal de Educação de São Paulo, mas continuou membro de seu Colegiado até fins de 1992. Saiu do serviço público paulistano "para ser devolvido ao mundo", como disse Luiza Erundina, na grande festa da despedida dele no Teatro Municipal de São Paulo.
Assim, desde 27 de maio de 1991, vem se dedicando a outras atividades. Com grande paixão, voltou a escrever. E não com menos prazer, voltou também à docência na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP - no Programa de Supervisão e Currículo do curso de pós-graduação. O Programa, inovando o ato de ensinar-aprender, leva para a sala de aula três de seus professores que, conjuntamente com os (as) alunos (as), dialogam em torno dos temas das dissertações e teses deles ou delas ou ainda em torno de algum objeto do conhecimento necessário a um curso de formação de educadores. Paulo Freire é um desses professores.
Desde 1987, Freire tem sido um dos membros do Júri Internacional da UNESCO que, a cada ano, se reúne no verão de Paris para escolher os melhores projetos e experiências de alfabetização dos cinco continentes cujos prêmios são outorgados e entregues em cada 08 de setembro, Dia Internacional da Alfabetização.
No 2º. Semestre letivo de 1991, Paulo foi professor convidado da USP, a mais
antiga e uma das mais famosas universidades do país, para desenvolver um
trabalho amplo proferindo palestras nas Faculdades, gravando vídeos e discutindo
projetos novos e pioneiros da Universidade.
4. Repercussão da obra de Paulo
Freire
Em relação à obra de Paulo Freire, publicada em quase todo o mundo, ela é composta de inúmeros livros, uns exclusivamente seus, outros "falados" em parceria com outros educadores; ensaios e artigos em revistas especializadas; entrevistas a pessoas que escreveram sobre ele, a rádios, a TVs, a jornais e a revistas diversas; conferências proferidas; orientação de teses; seminários e debates em universidades de todo o mundo e prefácios em obras de outros autores.
A Pedagogia do oprimido, que é sem dúvida sua obra mais importante, foi traduzida e vem sendo publicada em mais de vinte idiomas. Isto prova a atualidade de seu pensamento neste fim de século, pois o problema da libertação dos oprimidos, principalmente com a arrancada neoliberal, continua se apresentando como o maior desafio dos homens e das mulheres que constroem o seu tempo e o seu espaço histórico.
Sua obra teórica, reflexão sobre sua prática, tem servido para fundamento teórico de trabalhos acadêmicos e inspirado práticas em diversas partes do mundo, desde os mocambos do Recife às comunidades barakumins do Japão, passando pelas mais consagradas instituições educacionais do Brasil e do exterior.
Tal influência abrange as mais diversas áreas do saber: a pedagogia, filosofia, teologia, antropologia, serviço social, ecologia, medicina, psicoterapia, psicologia, museologia, história, jornalismo, artes plásticas, teatro, música, educação física, sociologia, pesquisa participante, metodologia do ensino de ciências e letras, ciência política, currículo escolar e a política de educação dos meninos e meninas de rua.
Hoje, infelizmente, é impossível elencar todas as citações à obra de Paulo Freire espalhadas pelo mundo, por isso recebe convites dos mais diversos países para proferir conferências, coordernar seminários, compor júris, orientar ou examinar dissertações e teses, escrever prefácios de livros ou artigos de revistas, dar entrevistas e endossar manifestos educativos ou políticos ou, simplesmente, para receber homenagens.
Temos notícias de que várias instituições adotaram o nome de Paulo Freire: estabelecimentos escolares nas cidades de São Paulo - SP; Niterói - RJ; Olinda - PE; Jundiaí - SP; Pimenta Bueno - RO; Angicos - RN; e Itaguaí - RJ; no Brasil; Arequipe, no Peru; na cidade do México, no país de mesmo nome; Cochabamba, na Bolívia e Málaga e Granada na Espanha. Uma organização da Holanda, fundada nos anos oitenta para orientar e beneficiar camponeses da Nicarágua, também tomou o nome de Paulo Freire, por ter, como princípio, o pensamento freireano. Diretórios Acadêmicos das Faculdades de Educação da USP, da Universidade Federal do Ceará, da Universidade de Mogi das Cruzes e da Universidade de Ijuí (Unijuí) Campus de Santa Rosa também levam seu nome.
Em 09 de novembro de 1994, Paulo Freire recebeu em Washington DC o Prêmio instituído pelo Internacional Consortium for Experimental Learning que leva o seu próprio nome. O prêmio que contempla, a cada ano, um renomado educador, o homenageia por suas contribuições para a teoria e a prática do ato de aprender-ensinar.
Freire é cidadão honorário das seguintes cidades no Brasil: Rio de Janeiro, desde 06.10.1983; São Paulo, desde 30.04.1986; São Bernardo do Campo, desde 13.04.1987; Campinas, desde 28.04.1987; Belo Horizonte, desde 27.10.1989; Itabuna, desde 13.04.1992, Porto Alegre; desde 26.05.1992; Angicos, desde 28.08.1993 e Uberaba, desde 17.11.1995.
Foi homenageado com o "Reconhecimento Fraterno" da cidade de Los Angeles nos USA em 13.03.1986 e de Cochabamba, Bolívia em 29.05.1987. É nome de rua em Itabuna, Bahia, pela Lei nº. 1400, assinada pelo Prefeito Ubaldo Dantas em 23 de dezembro de 1987, que diz, entre outras coisas: "Art. 19 - Fica denominada de Paulo Freire a rua que começa no Posto Timbaúba, na Av. Ibicaraí, e sai até a rua conhecida por Quadra "A" ".
Recebeu também o reconhecimento público pela sua práxis educativa através das
seguintes homenagens, entre outras: Ordem do Mérito da Marim dos Caetés,
de Olinda, em agosto de 1979; Prêmio "William Rainey Harper" da The Religious
Education Association of the U.S. and Canadá, Califórnia, USA, em 20 de novembro
de 1985 (concedido juntamente a Elza Freire); "Prêmio Estácio de Sá" do Governo
do Estado do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1985; título de Comendador da
"Ordem Nacional do Mérito Educativo" do Ministério da Educação e Cultura do
Brasil, em 13 de junho de 1987; Prêmio "Mestre da Paz" da Asociación de
Investigación y Especialización sobre Temas Iberoamericanos, A.I.E.T.I., da
Espanha, em janeiro de 1988, "Prêmio Frei Tito de Alencar" da Prefeitura de
Fortaleza, em 25 de março de 1988; "Medalha do Mérito Cidade do Recife - Classe
Ouro", em 28 de março de 1988; prêmio "Manchete de Educação", dos anos de 1989 e
1990; "Diploma do Mérito Internacional" - mais especialmente pelo livro "A
importância do Ato de Ler", da International Reading Association, Estocolmo,
Suécia, em julho de 1990; reconhecimento do Serviço Universitário Mundial, em 22
de outubro de 1990, em São Paulo; título de "Educador do Ano" concedido pela
Câmara Municipal de Vereadores de Mogi das Cruzes, S.P. em 26 de outubro de
1990; medalha "Libertador da Humanidade", outorgada em 27 de abril de 1993 pela
Assembléia Legislativa da Bahia; medalha concedida durante a Conferência
Internacional de Educação para o Futuro, em São Paulo, em 04 de outubro de 1993;
título de Grão-Mestre da "Ordem Nacional do Mérito Educativo" do Ministério da
Educação e Cultura do Brasil, em 11 de novembro de 1993; medalha "Jam Amos
Comenius" do governo da República Tcheca, em Genebra, Suíça em outubro de 1994,
medalha "Paulo Freire" - a educação da paz, liberdade, alfabetização,
conscientização do "Primeiro Congresso de Formação e Cooperação entre países
lusófanos", em setembro de 1995, Faro, Portugal; medalha "Pedro Ernesto" da
Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, em 06 de novembro de 1995,
além do já mencionado "The Paulo Freire Awards" da International Consortium
Experimental Learning, em 09 de novembro de 1994, em Washington D.C.,
USA.
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MEDALHA COMENIUS PARA PAULO FREIREA segunda premiação com a Medalha Comenius ocorreu no dia 5 de outubro de 1994 - Dia Internacional do Professor - no Centro Internacional de Convenções de Genebra durante a quadragésima-quinta sessão da Conferência Internacional de Educação. Esta medalha foi criada pela República Tcheca e pela UNESCO em conjunto, por ocasião do quarto centenário do nascimento de Jan Amos Comenius e para premiar trabalhos de destaque de indivíduos e instituições nas áreas de pesquisa educacional e inovações. O Diretor Geral da UNESCO, Sr. Federico Mayor, e o Ministro da Educação da República Tcheca, Sr. Philip, outorgaram uma das oito medalhas ao Sr. Paulo Freire do Brasil, um educador conhecido mundialmente e campeão de um novo método de ensino, o "método Paulo Freire", onde a realidade do educando é levada em consideração no contexto da atividade de aprendizagem (Hans Füchtner, Frankfurt).
Freire foi também contemplado por seus trabalhos na área educacional com os seguintes prêmios: "Prêmio Mohammad Reza Pahlevi" do Irã, pela UNESCO, do ano de 1975, em Persépolis, Irã; "Prêmio Rei Balduíno para o Desenvolvimento", da Bélgica, do ano de 1980, em 15.11.1980, em Bruxelas; "Prêmio UNESCO da Educação para a Paz", da UNESCO, do ano de 1986, em Paris, em setembro de 1986; "Prêmio Andres Bello" da Organização dos Estados Americanos - OEA - como Educador do Continente de 1992, em 17.11.1992, em Washington D.C., USA; "Prêmio Moinho Santista" da Fundação Moinho Santista, em São Paulo, Brasil, em 29.09.95; além do já mencionado "The Paulo Freire Awards", da International Consortium Experiental Learning, em 09 de novembro de 1994, em Washington D.C., USA.
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EDUCAR PARA A PAZNo momento em que a UNESCO me dasafia ao homenagear-me não posso esquecer o quanto pude crescer no desempenho da atividade docente, desafiado também e aberto ao desafio de estudantes, às vezes jovens urbanos universitários de cidades várias do mundo, às vezes trabalhadores dos campos e de fábricas citadinas de pedaços vários do mundo.
Verifiquei, também, no meu convívio com trabalhadores e trabalhadoras urbanos e rurais que a leitura menos ingênua do mundo não significa ainda o compromisso com a luta pela transformação do mundo, muito menos a transformação mesma como parece ao pensamento idealista.
De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi sobretudo que a paz é fundamental, indispensável, mas que a paz implica lutar por ela. A paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças o torna opaco e tenta miopisar as suas vítimas.
Concluindo, me parece importante dizer que estou muito consciente da natureza de homenagens como a que acabe de receber. Elas não imobilizam, não paralisam, não arquivam os homenageados. Ao ressaltar o que fazem os desafios para que continuem fazendo cada vez melhor. Estas homenagens têm uma dimensão basilar, oculta, com relação à qual os homenageados devem estar despertos. Elas são também um ato de advertência e de cobrança. Os homenageados não podem dormir em paz só porque receberam a homenagem. Eu me sinto cobrado a continuar a merecer a homenagem de hoje (Paulo Freire, ao receber o Prêmio Educação para a Paz da UNESCO, Paris, 1986).
Três instituições educativas criaram com o nome de Paulo Freire, uma cátedra, em Highlander Center, no Tennesse, nos Estados Unidos, em fevereiro de 1990; a Universidade de Glascow, Escócia, uma bolsa de pesquisa para alunos de Pós-Graduação, em 1994 e uma Biblioteca Popular em Campinas, no Brasil.
A Paulo Freire foi outorgado o título de
"Doutor Honoris Causa" pelas
seguintes instituições: Universidade Aberta de Londres, Inglaterra, em junho de
1973; Universidade Católica de Louvain, Bélgica, em fevereiro de 1975;
Universidade de Michigan - Ann Arbor, USA, em 29 de abril de 1978; Universidade
de Genebra, Suíça, em 06 de junho de 1979; New Hamphire College, USA, em 29 de
julho de 1986; Universidade de San Simon, Cochabamba, Bolívia, em 29 de março de
1987; Universidade de Santa Maria, Brasil, em 08 de maio de 1987; Universidade
de Barcelona, Espanha, em 02 de fevereiro de 1988; Universidade Estadual de
Campinas, Brasil, em 27 de abril de 1988; Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, Brasil, em 27 de setembro de 1988; Universidade Federal de Goiás,
Brasil, em 11 de novembro de 1988; Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Brasil, em 23 de novembro de 1988; Universidade de Bolonha, Itália, em 23
de janeiro de 1989; Universidade de Claremont, USA, em 13 de maio de 1989;
Instituto Piaget, Portugal, em 11 de novembro de 1989; Universidade de
Massachussetts, Amherst, USA, 26 de maio de 1990; Universidade Federal do Pará,
Brasil, em 15 de novembro de 1991; Universidade Complutense de Madri, Espanha,
em 16 de dezembro de 1991; Universidade de Mons-Hainaut, Bélgica, em 20 de março
de 1992; Wheelock College, Boston, USA, em 15 de maio de 1992; Universidade de
El Salvador, El Salvador, em 03 de julho de 1992; Fielding Institute, Santa
Barbara, USA, em 06 de fevereiro de 1993; Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Brasil, em 30 de abril de 1993; University of Illinois, Chicago, USA,
em 09 de maio de 1993; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, em 20
de outubro de 1994, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil, em 06
de dezembro de 1994; Universidade de Estocolmo, Suécia, em 29 de setembro de
1995, (entregue na PUC-SP em São Paulo, em 17.10.1995) e Universidade Federal de
Alagoas, Brasil, em 25 de janeiro de 1996.
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RUMO À BARCELONACatorze livros e um currículo dedicado à liberdade. Agora, a homenagem vem de Barcelona. O educador Paulo Freire vai ganhar mais um prêmio internacional. Dia 2 de fevereiro, a Universidade de Barcelona entregará a ele o título de doutor honoris causa, sua distinção máxima. Já mandaram pedir as medidas para fazer a beca. Não estranhe se, junto com o traje de gala, ele usar suas alpercatas prediletas, marca registrada de sua simplicidade. Essa não é a primeira vez que se concede a Paulo esse título: outras nove universidades estrangeiras e duas brasileiras já o fizeram. Em breve, a UNICAMP e a Federal do Rio de Janeiro vão entrar nesta lista. Isso sem falar de prêmios como Educador e Paz, de 1986, atribuído pela Unesco.
Nada mau para quem foi escorraçado do Brasil e, depois, do Chile, quando irromperam as ditaduras. Seu pecado? Ensinar o povo a ler e depois pensar no que leu. Mostrar que educação não rima com domesticação, mas é uma prática cotidiana de liberdade.
Se Paulo Freire tem algum vício, certamente não é a vaidade. "Cada vez que recebo homenagens desse tipo - diz - sinto-me mais responsável. Não cultivo a falsa modéstia. Acho que esses prêmios têm razão de ser e me deixam feliz. Eles me desafiam a continuar trabalhando.
Põe trabalho nisso. Ele assessorou programas nacionais de alfabetização em vários países da América Latina e da África. No meio disso, Paulo escreveu 14 livros. Até agora. Suas idéias têm livre trânsito por quase todo o mundo. Pedagogia do oprimido, por exemplo, já foi traduzido em 17 línguas. Pesquisa recente revela que, só nos EUA, textos dele foram citados cinco mil vezes por educadores americanos.
Para os educadores brasileiros, uma palavra sobretudo política. A seu ver, "uma das brigas mais bonitas" é fazer com que a escola pública passe a atender às grandes massas e pela melhoria do quadro docente de 1º e 2º graus, revitalizando-se a antiga Escola Normal, dedicada à formação das professoras primárias.
Mas a mais bela lição de Paulo Freire está na forma como mergulha na vida. "Grandes alegrias? Foram quando nasceram meus filhos." Cinco filhos, cinco grandes alegrias. Emocionado, toca em ferida recente: "Outra imensa alegria foi ter vivido 42 anos com Elza e ter aprendido com ela que, quanto mais se ama, tanto mais se ama".
Uma homenagem que Paulo lembra com muito carinho é uma enorme escultura de pedra, numa praça em Estocolmo, em que ele aparece sentado junto com Mao Tsetung, Pablo Neruda, Angela Davis e duas intelectuais suecas. Lá, ele é freqüentado por crianças e passarinhos. Esses mesmos passarinhos que voltaram a fazer ninho no coração enorme e caloroso de Paulo Freire que, parece, não perdeu o costume de querer bem (Jorge Cláudio Ribeiro, jornalista e diretor da editora Olho D'Água. In: Jornal O Estado de São Paulo, 27/01/88).
Recebeu título de "Professor Emérito" da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, em 13 de dezembro de 1984 e da Fundação das Escolas Unidas do Planalto Catarinense (Uniplac), Lajes, Brasil, em 10 de julho de 1995 e como Distinguished Educator da Northeastern University, Boston, USA, em 14 de março de 1994.
Em homenagem aos que lutaram contra a opressão, a artista sueca Pye Engstron o esculpiu, em 1972, em pedra, ao lado de Pablo Neruda, Angela Davis, Mao Tsé-Tung, Sara Lidman, Elise Ottosson-Jense e Georg Borgström. Em forma de banco em uma pequena praça no bairro de Västertorp, em Estocolmo, Freire permanece aberto e coberto pelo frio do Norte a quem queira nele sentar-se.
Poderia elencar, entre outras, algumas instituições que criaram centros de documentação, informação, divulgação e estudo de e sobre Paulo Freire. Tenho, por justiça, que começar pelo CEDIF - Centro de Estudos, Documentação e Informação Paulo Freire - pelo esforço do professor Admardo Serafim de Oliveira junto à Universidade Federal do Espírito Santo e o "Bureau Paulo Freire" na Universidade Federal de Pernambuco, ambos no Brasil. Acrescento A.G.SPAK, Munique, Alemanha; CAAP - Centro di Animazioni per L'Autogestione Popolare, Alia, Itália; CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação - com sedes no Rio de Janeiro e em São Paulo, Brasil; CEG - da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil; Center for the Study of Development and Social Change, Cambridge, Massachussetts, USA; Centro de Educação Popular Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, Brasil; VEREDA - Centro de Estudos em Educação, São Paulo, Brasil; CEP - Centro Pastoral Vergueiro, São Paulo, Brasil; CIDOC - Centro Intercultural de Documentação, Cuernavaca, México; Conselho de Educação de Adultos para a América Latina - CEAAL, Chile; INODEP - Institute Oecuménique au Service du Développement des Peuples, Paris, França; Institut of Adult Education da Universidade de Dar-Es-Salam, Tanzânia; LARU Latin American Research Unit, Toronto, Canadá; MABIC - Mouvement d'Animation de Base International Outmoetings, Hasselt, Bélgica; Birgit Wingerrath (acervo particular), Drie-Benst, Alemanha; Research Library, Washington, DC - USA; SPE - Scuola Professional Emigranti - Zurigo, Zurique, Suíça; Syracuse University, Syracuse, NY - USA; The Ontario Institute for Studies in Education - OISE, Toronto, Canadá; UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo - Brasil; UNISINOS - Universidade Vale dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil; University of Michigan, Ann Arbor, Michigan ,USA e o Institulo Paulo Freire com sede em São Paulo, Brasil; em Los Angeles, CA - USA, Munique, na Alemanha e San José, Costa Rica.
Freire é também presidente honorário de algumas instituições: CEAAL, CECIP (Centro de Criação da Imagem Popular, Rio de Janeiro), INODEP (Institute Ecuménique au Service du Développement des Peuples, Paris), VEREDA (Centro de Estudos em Educação, São Paulo), INCA (Instituto Cajamar, São Paulo), ICAE (International Council for Adult Education, Toronto), CECUP (Centro de Educação e Cultura Popular, Salvador, Bahia), entre outras de todo o mundo.
Paulo Freire visitou, à convite, uma centena de cidades de todo o mundo, incluindo as do Brasil e as de outros continentes. Assim pôde conhecer e apreciar modos de pensar, de sentir e de agir de pessoas dos seguintes lugares: da América do Norte: USA, Canadá, México; da América Central: Nicaraguá, Costa Rica, El Salvador, Panamá, Cuba, Haiti, República Dominicana, Barbados e Granada; na América do Sul; Colômbia, Venezuela, Equador, Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai; da Europa: Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Bélgica, Holanda, Alemanha, Suíça, Itália, Áustria, Grécia, Polônia, Dinamarca, Suécia e Noruega; da África: Senegal, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Gabão, Angola, Botswana, Zâmbia, Tanzânia e Kenya; da Ásia: Irã, Índia e Japão; e da Oceania: Papua Nova Guiné, Nova Zelândia, Fiji e Austrália.
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CARTA DE INDIRA GANDHICaro Paulo Freire,
Lamento saber que uma indisposição de saúde tenha motivado o cancelamento de sua visita à India. Espero que você se recupere completamente e logo. Tente vir à Índia novamente.Esperava encontrá-lo. Tenho apenas uma noção sobre suas idéias em educação. Mas isto é suficiente para despertar meu interesse. O homem é uma criatura fascinante com uma personalidade multi-facetada e capaz de tanto. Parece-me que, com exceção de um número infinitesimal, este potencial é coberto por camadas e camadas de um tipo ou outro de inibição. Nosso sistema de educação e a estrutura da sociedade desencoraja qualquer mudança no do status quo e apóia apenas os interesses de uma pequena parcela da população.
Com minhas lembranças e meus melhores votos, atenciosamente, Indira Gandhi (New Delhi, 16 de maio de 1973).
Seus livros publicados são: Educação como prática da liberdade; Pedagogia do oprimido; Extensão ou comunição?; Ação cultural para a liberdade; Educação e mudança; Cartas à Guiné-Bissau; Conscientização: teoria e prática da libertação; A importância do ato de ler; Política e educação e Educação na cidade (Estes dois últimos livros reúnem algumas entrevistas suas quando era secretário da educação. No livro Política e educação, há também algumas conferências recentemente pronunciadas nos USA e na Europa); Pedagogia da esperança - uma releitura de Pedagogia do oprimido; Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar (Como diz o próprio título, um livro destinado aos professores de um modo geral, mas, sobretudo, às alunas do curso de magistério que estão se formando para serem professoras do ensino primário. Penso que seria bom que pais e mães de crianças em idade escolar também o lessem e assim tivessem a oportunidade de entender as denúncias feitas por Freire no sentido de se caminhar para um profissionalismo mais consciente e eficiente dos e das docentes, que passa, necessariamente, pela compreensão e adesão das famílias dos alunos); Cartas à Cristina ( Quinto trabalho escrito após deixar a Secretaria de Educação de São Paulo, é um livro de ensaios com temas que vão das dificuldades de sua família empobrecida nos anos 30 até a questão da ética do professor-orientador em sua relação afetivo-epistemológico-ideológica com o aluno orientando. Estas cartas foram prometidas à sua sobrinha Cristina quando ainda vivia no exílio, mas só depois de muito mais de dez anos foram concluídas) e À sombra desta mangueira (Escrito em 1995, como contraponto à onda do neoliberalismo, que vem invadindo o mundo e, nos dias atuais, transforma-se em projeto que propala a salvação nacional de nossa sociedade).
Os livros em diálogo com outros educadores são: Paulo Freire ao vivo, com professores e alunos da Faculdade de Ciências e Letras de Sorocaba; Por uma pedagogia da pergunta, com Antonio Faundez; Essa escola chamada vida, com Frei Beto; Medo e ousadia: o cotidiano do professor, com Ira Shor; Pedagogia: diálogo e conflito, com Moacir Gadotti e Sérgio Guimarães; Sobre Educação, Vol. I e II, com Sérgio Guimarães; Aprendendo com a própria história, Volume I, com Sérgio Guimarães (deverão brevemente "falar" o Volume II); Teoria e prática em educação popular, com Adriano Nogueira; Alfabetização: leitura do mundo, Leitura da Palavra, com Donaldo Macedo e We Make the Road by Walking, com Myles Horton.
Todos os livros de Paulo Freire, com exceção desse último listado feito em parceria com Myles Horton, estão publicados no Brasil, na língua portuguesa, obviamente. Quase todos estão editados em inglês, francês e espanhol e grande parte deles também em italiano e alemão.
A Pedagogia do oprimido foi traduzida para os povos dessas citadas
línguas e, no mínimo, para mais duas dezenas de idiomas desde o japonês, o hindu
e outras línguas orientais até o ídiche, sueco, holandês e outras línguas dos
países europeus. Educação como prática da liberdade foi também traduzido
para a língua basca e Pedagogia da esperança inclui em suas traduções, o
dinamarquês.
Considero muito importante chamar a atenção dos leitores e leitoras desta biografia para a maneira como Paulo Freire vem escrevendo seus textos. Seu processo de escrever, segundo ele mesmo confessa, não é apenas o de grafar as suas idéias concebidas, com o lápis ou, o que é mais habitual para ele, com uma caneta hidrográfica numa folha de papel, mas o de produzir textos bonitos que exponham com exatidão o seu raciocínio filosófico-político de educador do mundo. Freire não tem pressa de produzir livros e textos para contá-los em número no fim de cada ano - não é esse o seu objetivo, como não deve ser o de nenhum intelectual no mundo. Ele elabora suas idéias mentalmente, anota em pedaços de papel ou em fichas ou as põe "no cantinho da cabeça" quando elas surgem na rua, nas conversas ou durante a sua fala em alguma conferência.
Acumula-as, e depois quando as tem lógica, epistemológica e politicamente filtradas, organizadas e sistematizadas, ele senta-se na cadeira de sua escrivaninha e sobre um apoio de couro, com papel sem pauta e de próprio punho, quase sempre sem rasuras e sem nenhuma correção, escreve seu texto, cercando o tema, aprofundando-o até esgotá-lo, "desenhando" no papel branco com caneta azul, fazendo muita vezes os destaques com tinta vermelha ou verde, a imagem criada na sua inteligência, a linguagem criada no seu "corpo consciente", no seu corpo inteiro, porque vem de sua paixão pelo ato de conhecer, de ler-escrever e de sua vivência pessoal como homem sensível de seu tempo.
Assim quando se senta para escrever não fica fazendo rabiscos "procurando inspiração". Não. Senta-se e escreve. Quase nunca muda seus parágrafos, suas palavras, sua sintaxe ou a divisão dos capítulos de seus livros. Pára para pensar ou para consultar um dicionário. É disciplinado , atento, paciente. Nunca quer terminar afobado ou irritado um texto porque tem a hora ou o dia estipulado para acabá-lo.
Escreveu os três primeiros capítulos da Pedagogia do oprimido em apenas quinze dias porque os tinha pensado por mais de um ano. Ficou meses escrevendo o quarto e último capítulos, porque os escreveu logo após os momentos em que ia ordenando as idéias em seu pensamento.
A Pedagogia da esperança veio em compasso de maturidade, por isso escreveu-a toda no mesmo ritmo. A riqueza do conteúdo acompanhada de uma maior homogeneidade no seu estilo, cresce e se aprofunda a cada parágrafo, a vibração com o envolvimento de sua obra com o mundo está presente da primeira à última linha e sua paixão e esperança pelas pessoas e pelo mundo embebem cada uma de suas palavras.
Acabada a Pedagogia da Esperança, Freire escreveu Professora sim: tia não: cartas a quem ousa ensinar. Embora as cartas mudem de tema, permanecem nelas a riqueza e o amadurecimento de sua linguagem de educador político. É uma linguagem apaixonada e crítica que respeita o leitor-professor ou leitora-professora ao expor as ideologias subreptícias a esse tratamento aparentemente afetivo - "Tia"- e outras de que a e o profissional da educação têm que estar conscientes para radicalizar sua competência profissional .
Cartas a Cristina, foi iniciado em Genebra e, mesmo sofrendo várias interrupções, tem a continuidade e coerência próprias de Freire.
Certo de que as injustiças sociais não existem porque têm de existir, respondeu aos desafios do nosso tempo escrevendo À sombra desta mangueira no qual buscou desmistificar as teses do neoliberalismo.
A forma dada por Freire à Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar e Cartas à Cristina difere da dada à Pedagogia da esperança ou À sombra desta mangueira. Nestes primeiros dois livros, ele trata os temas-problemas em forma de cartas porque as considera mais comunicantes do que a forma tradicional de ensaios. Na Pedagogia da esperança, opta, entretanto, por um trabalho que, aparentemente, não tem a forma mais direta e próxima de se dirigir ao leitor ou leitora, mas que, na verdade, por tratar de reações positivas e negativas das pessoas ao seu livro Pedagogia do oprimido, o livro se aproximou muito do leitor, provocando-o tanto quanto as "cartas", mesmo sendo um livro que não tem sequer capítulos. Assim, também escreveu À sombra desta mangueira entendendo que o leitor mesmo os reescreverá entre outros momentos, sem dividi-los em capítulos, itens e sub-itens.
Todos estes cinco livros têm, acima de tudo, um ponto em comum - a forma madura e convincente da teoria e da prática educativas conscientes, da lucidez e da transparência, da opção política a favor dos oprimidos e da ética de vida e da estética da linguagem de quem sabe o que quer e sabe como dizer, porque traduz os anseios de todos aqueles e todas aquelas que querem a necessária libertação dos homens e das mulheres e não só a sua própria, o seu desejo pessoal.
É fundamental enfatizar que em Paulo Freire não há um tempo de escrever e um tempo de ler. Há sim um tempo de ler-escrever ou escrever-ler. É que esses atos tidos e aceitos quase sempre como separados em dois momentos distintos do ato de conhecer vêm sendo, para Paulo, um instante único e indissociável do saber.
Quando Freire escreve, vai "lendo" outros autores e relendo a si próprio da mesma maneira que ao ler a si e a outros autores vai, ao mesmo tempo, escrevendo ou re-escrevendo a si e aos outros.
Terminaria esta minha análise sobre o ato de escrever de Paulo dizendo que seus manuscritos se inserem no papel com tanta harmonia que mais se assemelham a um desenho que pode ser olhado e admirado antes mesmo de lermos o significado de suas palavras e frases ou da leitura de mundo que estão escritos.
A obstinação que vem devotando nestes últimos anos ao ato de escrever se deve ao seu sonho da utopia democrática. Ele está convicto de que devemos fazer o possível hoje para construirmos uma sociedade democrática amanhã. Como educador-político, tem a percepção clara de que cabe a nós educadores uma parte desta tarefa de transformação de nossa sociedade. Escrevendo como educador-político se sente e se sabe cumprindo a tarefa-desafio que se lhe impôs.
Assim, vem se entregando a ela, escrevendo, contestando, argumentando, procurando interferir mais diretamente no processo educativo para, dialeticamente, transformar as sociedades , sobretudo a brasileira, no sentido de que ela se torne menos autoritária, menos discriminatória, enfim, mais justa.
Assim, Freire não escreve por escrever, e também não é educador para ser apenas um pedagogo do povo, mas para ser um escritor-pedagogo-educador que quer dar instrumentos epistemológicos e políticos às mulheres e aos homens para que aquelas e estes transformando e reinventando suas sociedades, se afirmem, enquanto sujeitos de sua história, conscientes, engajados e felizes.
O seu esforço e sua dedicação à causa tão importante como a educação estimularam educadores e educadoras, sindicatos e sindicalistas, dirigentes e associados de organizações de diversas naturezas de todo o mundo, convictos de que a paz começa por dias melhores e direitos iguais para todos os povos, a apresentarem, em 1993, seu nome ao Comitê que outorga a cada ano o Prêmio Nobel da Paz, na Noruega.
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INDICAÇÃO AO PRÊMIO NOBEL DA PAZ
MoçãoA SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), entidade que reúne cientistas brasileiros de todas as áreas do conhecimento, na sua 45ª Reunião Anual, realizada em Recife, na Universidade Federal de Pernambuco, de 11 a 17 de julho de 1993, manifesta seu apoio à indicação do Prof. Paulo Freire para o Prêmio Nobel da Paz.
Consideramos a iniciativa de premiação ao educador brasileiro e recifense como o reconhecimento oficial ao seu projeto pedagógico que se espraiou por todo o mundo nesta segunda metade do século XX.
A obra de Paulo Freire está orientada para a emancipação da pessoa humana, para a liberdade dos povos e à justiça social entre os homens, para a democracia autêntica como soberania popular e para a paz entre os cidadãos, num clima de humanização e de conscientização.
Conceder o Prêmio Nobel da Paz a Paulo Freire não representa apenas o reconhecimento da obra de uma vida, mas também o reconhecimento de muitas pessoas que lutam pelo quase impossível: dar às pessoas marginalizadas a chance de levar uma existência digna, despertando-as da apatia e fazendo valer os seus direitos.
SBPC, Recife, 17/07/93
Lutar pela paz através da educação pressupõe um novo entendimento de paz que vem conquistando, dia a dia, novos adeptos. Freire, que partilha dessa compreensão de paz, vem à educação se dedicando com amor e tenacidade, por isso o seu nome se mantém entre os que podem um dia receber este reconhecimento da humanidade.
À sua experiência pessoal, ao seu que-fazer e às suas reflexões, Paulo Freire juntou as influências recebidas de diferentes pessoas: de seu amigo e antigo diretor do Colégio Oswaldo Cruz, Aluízio, de sua primeira mulher Elza, alfabetizadora de crianças, de outros(as) educadores(as) e filósofos(as), e também das pessoas do povo que, igualmente fortes nas suas marcas, não ficaram esquecidas em sua práxis.
Freire jamais nega estas influências pois se sabe vivendo, trabalhando e fazendo em situação dada - que ele não fez - e, portanto, sofrendo, como todo homem e toda mulher - seres históricos - as influências da cultura de seu tempo e das culturas anteriores, mesmo se sabendo crítico e fazedor.
É desse modo que no seu que-fazer e nas suas reflexões carrega as suas experiências pessoais molhadas, como gosta de dizer, das influências deste mundo que é ao mesmo tempo seu e não o é. É da relação dele com o mundo que inclui o outro.
Assim, reinventando e superando, em parte ou no todo, muitos dos seus mestres, foi - e continua - construindo a sua própria maneira de pensar. São presenças na sua leitura de mundo tanto Marx, Lukacs, Sartre e Mounier quanto Albert Memmi, Erich Fromm, Franz Fanon, Merleau-Ponty, Antonio Gramsci, Karel Kosick, Marcuse, Agnes Heller, Simone Weill e Amilcar Cabral.
Não há como negar na sua maneira própria de pensar porque reinventa e supera
em parte ou no todo muitos dos seus mestres, a influência do marxismo, do
existencialismo, do personalismo ou da fenomenologia. São presenças na sua
leitura de mundo tanto Marx, Lukacs, Sartre e Mounier quanto Albert Memmi, Erich
Fromm, Franz Fanon, Merleau-Ponty, Antonio Gramsci, Karel Kosik, Marcuse, Agnes
Heller, Simone Weill e Amilcar Cabral.
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Carta do filósofo
ALBERT MEMMICaro Senhor:
Problemas de saúde me impediram de vos agradecer por ter aceitado fazer parte do comitê de honra no trigésimo aniversário do "Retrato do colonizado".A confiança de um lutador como vós me tem sido muito reconfortante.
Com os meus melhores votos.
Albert Memmi
Paris, 16/01/87
Aluízio P. de Araújo, um homem que fundamentava na democracia sua luta pela educação, influenciou-o desde a adolescência não só pelo caráter de extremo respeito e solidariedade para com o outro, mas também pelo seu humanismo cristão autêntico, pelo seu exemplo de vida, de seriedade, de cidadão e de compreensão humana. Teve como princípio, como um sonho, o direito à escola para todo homem e toda mulher. Assim, fez de seu colégio um espaço aberto para quem quisesse estudar, mesmo para aquele que não pudesse pagar ou pertencesse à religião, raça ou classe social diferente da sua.
Elza, sua companheira por 42 anos, professora e diretora de escolas públicas de Recife dos anos 40 até o golpe de Estado de 1964, influenciou-o com seu gosto pelo ato de alfabetizar, de fazer o outro capaz de escrever a palavra e de mostrar a alegria de quem a lê.
Têm sido importantes também para Freire, como ele revela tão claramente em
seus escritos de Pedagogia da esperança, as influências de um número
enorme de pessoas com as quais conviveu, discutiu conhecimento ou trabalhou em
todo o mundo. Dá testemunho de pessoas que o tocaram pela sensibilidade, pureza
e sabedoria de suas ações e narrativas, e daqueles que o instigaram pela razão
elaborada e lúcida do conhecimento científico.
Orgulhoso e feliz, modesto e consciente de sua posição no mundo, Paulo Freire vive a sua vida com fé, com humildade e alegria contida. Com seriedade e desejo de transformação. Aprendendo com os oprimidos e lutando para a superação das relações de opressão. Vivendo as tensões e os conflitos do mundo, mas esperançoso nas suas necessárias mudanças. Impacientemente paciente vem lutando por um mundo mais democrático.
Tem medo de viajar de avião e gosta de "passear de carro" para ver gente, paisagens e prédios. Cantarolava música popular brasileira e até hoje continua assobiando. Villa Lobos sabe disso!
Esperou pacientemente calado quase setenta anos, exatamente até o Natal de 1995, quando descobri que um de seus desejos mais recônditos era "ganhar de presente" uma bola de couro. Alegrou-se com o desejo adivinhado que guardava desde os tempos que a sua meninice pobre não permitia nada mais do que as bolas feitas com meias velhas rotas para jogar futebol nos campos de Recife e de Jaboatão. Andar de bicicleta continuará para sempre o sonho não realizado.
Sente-se à vontade falando com pessoas das classes populares. Valoriza as
idéias, as falas, os costumes, as crenças das pessoas dessa classe que têm, de
forma e natureza diferentes das dos intelectuais, provocado nele o sentimento de
solidariedade e cooperação e têm permitido entender, mais dialeticamente, com
eles e a partir deles, a filosofia, a política, a ciência e a própria
vida.
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TESTANDO A PERSONALIDADEDia 14 de maio de 1987, Moacir Gadotti submeteu Paulo Freire a uma brincadeira muito séria. A mesma brincadeira que uma das filhas de Marx fez com seu pai. Trata-se de um questionário com 17 questões. Eis as perguntas e as respostas de Paulo Freire:
1ª A qualidade que você mais aprecia:
a) Nas pessoas: coerência
b) Nos homens: decisão
c) Nas mulheres: ternura2ª O seu traço característico: Tolerância
3ª Sua idéia de felicidade: Luta
4ª Sua idéia de desgraça: Opressão
5ª O defeito que mais desculpa: Amar errado
6ª Sua antipatia: Intelectual arrogante
7ª Sua ocupação predileta: Ensinar-aprender
8ª Seus poetas prediletos: Bandeira, Drumond, Thiago de Melo, Chico Buarque - no Brasil
9ª Seus prosadores prediletos: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, J. Amado - no Brasil
10ª Seu herói predileto: Meu pai
11ª Sua heroína predileta: Elza
12ª Sua flor predileta: Rosa
13ª Sua cor predileta: Vermelha
14ª Seu nome predileto: Maria
15ª Seu prato predileto: Peixe ao leite de coco
16ª Sua máxima predileto: Ama sem medo
17ª Sua divisa predileta: Unidade contra a opressãoComparem-se as respostas dadas por Paulo Freire as de Karl Marx (1815-1883):
1ª) A qualidade que você aprecia mais:
a) Nas pessoas: a simplicidade
b) nos homens: a força
c) nas mulheres: a fraqueza2ª O seu traço característico: A coerência de propósitos.
3ª Sua idéia de felicidade: A luta.
4ª Sua idéia de desgraça: A submissão.
5ª O defeito que mais desculpa: A credulidade.
6ª Sua antipatia: Martin Tupper.
7ª Sua ocupação predileta: Percorrer os sebos e livrarias.
8ª Seus poetas prediletos: Shakespeare, Ésquilo, Goethe.
9ª Seu prosador predileto: Diderot.
10ª Seu herói predileto: Espártaco, Kepler.
11ª Sua heroína predileta: Gretchen.
12ª Sua flor predileta: O loureiro.
13ª Sua cor predileta: O vermelho.
14ª Seu nome predileto: Laura, Jenny (nomes de suas filhas).
15ª Seu prato predileto: Peixe.
16ª Sua máxima predileta: Nada de humano me é estranho.
17ª Sua divisa predileta: Dúvida de tudo.
Ama São Paulo, Santiago, Cambridge, Genebra, cidades que o acolheram de maneira generosa, mas ama o Recife como se uma pessoa fosse, seu solo-mãe, terra quente da brisa fresca de todas as tardes. Ama as pessoas independentemente de sua raça, de sua religião, de sua idade ou de sua opção ideológica. Tem muitos amigos e recebe afeto e carinho de homens e mulheres por onde passa, conversa ou faz discursos.
Gosta de cães, mas, sobretudo, de passarinhos.
É tolerante e calmo, mas suficientemente agressivo para defender seu espaço pessoal e profissional. Nunca ofende, mas também não suporta que o ofendam.
Nordestinamente gosta do calor das águas e de caminhar pela praia. Abate-se com o frio que traz consigo o escuro da eterna noite e se compraz com o calor que o sol forte e luminoso impõe ao nordeste brasileiro.
A comida típica do nordeste, cujo sabor guarda de memória, é quase exclusiva em seu cardápio. Não troca por nada uma "galinha de cabidela" servida com feijão ou um "peixe ao leite de côco" servido com feijão de côco. Sorvetes? Só os de "frutas tropicais": pitanga, cajá, graviola, mangaba... Doces? De jaca e de goiaba, acima de todos. Frutas? Manga, sapoti, araçá, jaca, banana, abacaxi, mamão, carambola, pinha, caju...
Foi fumante voraz e só quando pressentiu o mal que o tabaco estava fazendo à sua saúde é que largou, com raiva, como gosta de enfatizar, a fumaça e as tragadas. Talvez um pouco tarde porque vem sofrendo seqüelas que a raiva do fumo não apagou em seu corpo.
Freire é, sem dúvida, um homem nordestino em seus sentimentos fortes e apaixonados, em sua negação contra tudo que esteja fora de seus princípios; em sua maneira de falar e escrever metaforicamente através de estórias; em seu hábito alimentar, em seu jeito de respeitar a honradez e a lisura nos homens e nas mulheres e sobretudo em sua inteligência criadora e revolucionária de homem inconformado com as injustiças que vêm sendo historicamente impostas à grande parte da população do mundo.
Considera-se um ser privilegiado por ter podido acompanhar tantos eventos históricos importantes: a Revolução de 1930; a emersão das massas e os movimentos de educação popular; a viagem do homem à Lua; a luta de emancipação da mulher e seu novo espaço conquistado; as "proezas" dos computadores e do fax ; a volta do povo às ruas do Brasil pedindo eleições "diretas já" ou, mais recentemente, repudiando a corrupção e exigindo, ao mesmo tempo, a ética na política e o "impeachment" do presidente corrupto - eleito pela "inexperiência democrática" de nosso povo. Assim, comoveu-se com a participação alegre e decidida dos jovens "cara pintada" aos milhões pelas ruas e praças do país; endossou a postura de parte do magistrado brasileiro que conduziu o processo de maneira competente, com serenidade, firmeza e integridade, como também a determinação clara e lúcida de muitos deputados e senadores do Congresso Nacional na deposição do presidente e em outros momentos de necessidade de reação a atos e pessoas que, privilegiando seus interesses próprios, perpetuam a sociedade autoritária, elitista e injusta. Sabe, entretanto, que há muito por que se lutar para concretizarmos a democracia no Brasil, por isso continua escrevendo, bradando e se indignando.
Semblante calmo, cabelos longos e barbas brancas, estatura mediana, corpo magro, olhos cor de mel e sua constante disposição para trocar experiências, para dialogar, sobretudo, quando está explicitando suas idéias sobre educação ou discutindo as de outros, são algumas de suas características marcantes. São igualmente significativos seu olhar forte, meigo, profundo, comunicante e os gestos, sempre expressivos, de suas mãos. O olhar e os movimentos das mãos revelam os desejos e espantos de sua alma eternamente apaixonada pela vida. Quem conheceu Freire dificilmente esquecerá destes traços que traduzem sua personalidade segura, terna e comunicativa.
Gostaria de ter sido cantor famoso ou eminente gramático da língua
portuguesa, mas ele mesmo reservou para si o direito e o privilégio de ser,
reconhecidamente, um dos maiores educadores deste
século.
Fonte: http://www.ppbr.com/ipf/bio/esposa.html